terça-feira, 27 de março de 2012

Mercadorias Portuguesas Apresadas pelos Britânicos - III

Paulo Werneck

O assunto da devolução das propriedades portuguesas apresadas pelos ingleses continuou no número 3 do Correio Brasiliense, de Agosto de 1808. Veja aqui o início da história.
Os importantíssimos negócios do Sul da Europa tem occupado taõ largo espaço no meu papel, que apenas fallaría do objecto, de que vou a tratar, se naõ o considerasse de summa importância tanto para o commercio Portuguez, como para o credito da Naçaõ Ingleza.
Agora saberemos de detalhes realmente inacreditáveis: corsários ingleses apresaram navios mercantes portugueses que estavam na frota que se dirigia ao Brasil sob proteção da esquadra inglêsa! Foi o que o editor escreveu na continuação de sua opinião:
O motivo da detençaõ da propriedade Portugueza, pelo Governo Inglez, em Inglaterra, parece, na opiniaõ de muitos, que se naõ pode justificar, nem ainda com a apparente hostilidade do Principe Regente de Portugal, quando mandou excluir de seus portos os Navios Britannicos; porque, como se prova de um despacho official de Lord Strangford, essa medida foi tomada em conseqüência de intelligencias particulares, e convênio feito com o Governo Inglez, (veja-se o Correio Braziliense, No. 1. p. 20. ) Mas em fim sahio de Lisboa o Principe, concedendo á Naçaõ Ingleza, tudo que delle se podia exigir, e mais do que ninguém devia esperar, pois até perdeo e desemparou o seu Reyno, por seguir, ou ao menos seguindo, o partido Inglez, e no meio disto, á sua vista, no centro de sua esquadra, se lhe tomáram os navios de seus subditos; mais, alguns offiçiaes desses navios, que fôram apprezados ao pé da Náo, em cujo bordo se achava o Principe Regente, quizéram ir fallar-lhe, e os apprezadores naõ lho consentîram: taes foram, por exemplo, o navio Pombinha de Lisboa, e o Navio Fama.
A seguir o Correio recapitula as decisões já tomadas e publicadas anteriormente no Correio, bem como vistas na postagem anterior. Note-se que agora a data está certa.
Aos 6 de Janeiro, de 1808, se publicou uma Ordem, de S. M. B. em Conselho, sobre éstas propriedades Portuguezas detidas em Inglaterra, (veja-se o Correio Braziliense, No. 1. p. 16. ) que mandou nomear commissarios ou Agentes, para cuidar desta propriedade, e estabeleceo a distincçaõ ja explicada (Corr. Br. No. 2, p. 109) entre vassallos de S. A. R. existentes nos Dominios ultramarinos, e existentes em Portugal. A'vista dos inauditos sacrifícios, que o Principe Regente fez para salvar do poder dos Francezes as propriedades, e pessoas dos Inglezes, que residîam em Portugal, só motivos politicos de primeira ordem, que ainda saõ desconhecidos, poderîam justificar no Governo Inglez um acto, cujas apparencias éram da maior ingratidaõ para com os Portuguezes. Mas ainda que a consideraçaõ desses motivos politicos, possa escusar, ou fazer suspender o meu juizo a respeito do Governo Inglez, perco-me inteiramente num mar de conjecturas, quando busco as razoens porque o Ministro Portuguez, na Corte de Londres, havîa dar a sua approvaçaõ, e consentimento a semelhantes actos do Governo Britannico; porque sanccionando elle esta distincçaó e regulamentos, que saõ uma consequencia della, veio naõ só a fazer um grande mal aos seus convassallos do Principe Regente de Portugal, mas até a attacar indirectamente os Direitos de seu Soberano.

Quanto ao Commercio Portuguez fez-lhe o damno de approvar a detençaõ, em Inglaterra, de 35, ou 40 milhoens de cruzados, que a tanto montam as propriedades Portuguezas aqui detidas, somma enorme, considerada a pequenhes do Commercio de Portugal; e os damnos emergentes, e lucros cessantes, que desta detençaõ se seguem ao Commercio Portuguez, se naõ repararaõ talvez em 50 annos; e isto a tempo, que este mesmo Ministro Portuguez dava licenças aos negociantes Inglezes, para irem negociar ao Brazil, adiantando assim as vantagens de precedencia dos negociantes Inglezes aos seus nacionaes, que, pelo empate de seus fundos em Inglaterra, se vem obrigados a fazer sómente um ruinoso commercio passivo com a Inglaterra. Pelo que toca ao Soberano, digo, que a admissaõ desta distincçaõ involve o reconhecer tacitamente por Francez o território Portuguez na Europa, invadido pelos Francezes; e o Governo Britannico, e o Ministro Portuguez serîam os últimos de quem se devia esperar este tácito reconhecimento.

O manifesto da Corte do Rio de Janeiro, de 1 de Mayo, em que o Principe Regente de Portugal declara, que naõ deporá as armas, em quanto naõ estiver de posse do seu território, em Portugal, prova bem, que elle olha como seus aquelles vassallos, agora prisioneiros do inimigo, e aquellas pessoas, que até aqui usáram de tal linguagem, que parecia mostrar a sua accelleraçaõ em reconhecer os Residentes de Portugal, como Francezes, teraõ agora de mudar de tom, ou ir directamente em oposiçaõ com a declaraçaõ deste Soberano.

He evidente, que os Portuguezes, que ficáram em Portugal na partida do Principe, obedecêram a uma expressa ordem do seu Monarcha, alem da impossibilidade em que os deixaram de obrar de outra maneira. Logo elles, depois da invasaõ de Portugal pelos Francezes, éram taõ vassallos de S. A. R. como d'antes; e portanto tînham igual direito á protecçaõ de seu Soberano; logo ésta sancçaõ do Ministro Portuguez, á dicta distincçaõ attaca virtualmente os direitos de seu Soberano em Portugal, fazendo mais do que fez o mesmo Napoleaõ, que ainda naõ declarou Portugal conquista sua, nem parte do território Francez. E se aquella distincçaõ naõ reputa Portugal território Francez, ¿ como se detem a propriedade daquellas pessoas que la residem ? Ponhamos a hypothese de que os Francezes desembarcávam em Dover, e obrigavam os habitantes a submetter-se-lhe á força d'armas, ¿ acaso estes vassallos Britanicos perderiam o direito, que tinham á sua propriedade, ou deixaria o Governo Inglez de ser obrigado a protegellos ? Naõ: pois logo o mesmo se deve dizer dos Portuguezes, que naõ saõ agora, em Lisboa, senaõ uns prisioneiros dos Francezes.

O Governo Inglez parece haver-se subtraindo á responsabilidade, que estes argumentos expoem, publicando a Ordem em Conselho de 4 de Mayo (veja-se Corr. Br. No. 1. p. 18. ) pela qual toda a propriedade Portugueza detida se põem ás ordens do Principe Regente; mas vejamos o modo porque este negocio tem sido conduzido, ainda depois de conhecidos os males ja feitos, e cujas conseqüências saõ irremediáveis.

Os agentes ou Commisarios a cujo cargo estavam estas propriedades escrevêram ao Ministro Portuguez a seguinte carta, cuja data he quarenta e tantos dias posterior á data da ultima Ordem em conselho.

Officio dos Commissarios das propriedades Portuguezas, 17 de Junho, de 1808.

SENHOR ! Temos a honra de acusar a recepçaõ da carta de V. E. na data de hoje; e, em resposta ás suas perguntas, temos de o informar—Que, havendo a Corte do Almirantado decretado, para S. A. R. o Principe Regente, em conseqüência da ordem em, Conselho de 4 de Mayo, a propriedade submettida á nossa custodia, nos consideraremos obrigados a obedecer a quaesquer ordens, que V. E. possa dar-nos como seu Representante; nem nós concebemos, que haja outro algum canal, por meio do qual possamos receber as ordens de S. A. R., se naõ V. E.

Nos farêmos executar immediatamente as ordens, que V. E. passou, para a entrega das fazendas; e logo que o tempo nolo permittir mandaremos uma conta circumstanciada dos nossos contractos, segundo o que nos pede.

Temos a honra de ser com o maior respeito,
SENHOR, De V. E. muito obedientes e um criados,
(Assignados)
J. C. LUCENA.
A. Gibbs,
C. Dias SANTOS.
W. Burne.
A. S. E. o Cavalleiro de Souza Couttinho, &c. &c.
Note-se que a carta foi escrita pela comissão paritária criada pela decisão britânica de 6 de janeiro de 1808, comissão essa extinta pela decisão de 4 de maio, a menos das tarefas de transmissão das responsabilidades para o cônsul ou embaixador português. Entretanto, como o editor informou na edição de julho, o embaixador só três dias depois disso é que concocou a reunião com os negociantes portugueses e nomeou nova comissão.
Dous dias depois da recepçaõ desta carta mandou o Ministro Portuguez entregar aos donos, ou seus procuradores, a carga e navio denominado Conde de Pemche, os Commissarios naõ executaram esta ordem, e continuáram a dar instrucçoens ao Cap. do dicto navio, que lhez escreveo nesta forma.
Então a 19 de junho, na véspera da reunião com os comerciantes, portanto sem nova comissão, mas com toda a autoridade em mãos, autoridade reconhecida pela comissão bipartite, o embaixador mandou devolver o Conde de Pemche e não foi acatado, conforme atesta a carta do capitão do navio, publicada no Correio:
Carta do Capitão do Conde de Pemche 22 de julho de 1808
Senhores, A. Gibbs, Guilherme Burn, e C. Dias Santos,
Londres, 22 de Julho, de 1808.

Hontem 21 do corrente recebi a carta de V. Mces, com data de 12; eu naõ esperava que se dirigissem a mim, tendo V. Mces tanto em lembrança o terem lido a ordem em Conselho de S. M. Britânica de 6 de Janeiro, que decretáva a entrega da propriedade Portugueza em custodia da Juncta de Agentes sugeita ás ordens ulteriores de S. M. B. a qual foi servido derrogar por nova ordem de 4 de Mayo do presente anno, entregando toda a propriedade á direcçaõ do Ministro Portuguez residente nesta Corte, e mandando á Juncta cumprir as ordens, que lhes forem intimadas pelo dicto Ministro, visto ficar a propriedade Portugueza sugeita á determinaçaõ do P. R. de Portugal; por cuja ultima ordem, somente estou sugeito a obedecer ás ordens de S. E. as quaes saõ de nam obedecer a ordem alguma, que der a extincta commissam; por tanto a elle dicto Ministro V. Mces se devem dirigir, e naõ a mim pois V. Mces naõ ignóram, que nenhum vassallo Portuguez pode, sem desattender o seu Ministro, obedecer ordem alguma, que naõ sêjá por elle assignada, e eu, como vassallo muito fiel, sei zelosamente respeitar o Representante do meu Monarcha. Naõ posso porém deixar de notar as pomposas palavras nossa liçenca, contidas na carta de V. Mces quando taes expressoens nao se ácham nas ordens do Conselho de S. M. B., e como podem V. Mces dar uma licença, quando a commissaõ se acha suspensa, e desmembrada, por haver o Ministro deposto os Commissarios nomeados pela sua parte.—Sou de V. M.

Attento servidor,
G. J. Freire.
O editor publica então o ofício circular que o capitão teria recebido na véspera, datado do dia 12.
A Carta dos Commissarios, a que a sobredicta se refere, éra uma circular a todos o cap. de navios detidos; nestes termos.

Officio dos Commissarios para a propriedade Portugueza.

Sr. Cap. F-----. Esta carta serve para lhe prevenir, que estando o seu navio debaixo da nossa custodia, em conformidade das ordens do Conselho de S. M. B. naõ pode sahir deste porto sem nossa licença, e que temos nomeado o Sr. J. Cobb, para vigiar na execuçaõ deste Avizo, Londres, 12 de Julho, de 1808. Somos de V. Mce,

(Assignados)
Guilherme BURN.
ANTONIO GIBBS.
C. DIAS Santos.
Observe-se agora um possível desencontro. O ofício dos comissários, do dia 12, entregue no dia 21, é anterior à ordem do embaixador, dia 19, e à carta dos comissários reconhecendo a autoridade deste, do dia 17. Pode ter sido apenas um desencontro.
Em uma destas cartas escreveo o Ministro Portuguez o seguinte.

O Cap. I. A. do Navio Pombinha de Lisboa entregue a S. A. R. com toda a propriedade Portugueza (que antes estava detida) pela ordem do Conselho Privado Britânico irá motrar aos extinctos commissarios, a ordem, que por este despacho lhe dou de naõ obedecer a ordem alguma que elles lhe dem; e repito ao Sr. C. Dias Santos a ordem que ja lhe dei de naõ assignar papel algum como Commissario da commissaõ extincta, pela minha parte ao menos. Londres, 13 de Julho, de 18O8.

(Assignado)
D. D. A. DE SOUZA COUTTINHO
Esta nova carta é no mínimo confusa. Parece um trecho, pois falta o destinatário. Seria dirigida ao comissário Dias Santos, nomeado por Souza Coutinho para participar da comissão bipartite?
Eu naõ me demorarei na indecência desta altercaçaõ, que resulta da falta de explicaçaõ, que devia haver ao principio; mas seguramente, quando vejo continuarem os commissarios a exercitar as suas funcçoens, e os males da detençaõ da propriedade continuando, naõ posso deixar de lamentar a situaçaõ dos Portuguezes. Limitar-se o Ministro (por naõ dizer abater-se) á disputa de factos particulares, com os Commissarios, perdendo de vista a questaõ em geral, e a dignidade de sua naçaõ, he metter-se nos intrincados labyrintos de uma disputa forense, que acabará por consumir os poucos restos dessas propriedades que ainda existem. Ao Governo Britânico naõ dar uma resposta conveniente, eu, a ser Ministro Portuguez, teria protestado, e dado parte á Corte do Rio de Janeiro; mas munca, nem por obra, nem por palavra, admittiria algum principio, que exclussie da protecçaõ do Soberano aquelles vassallos; que, naõ por sua culpa, mas por uma desgraça, e m qne elles naõ tiveram parte, estaõ prisioneiros do inimigo; aquelles vassallos fieis, que, no momento em que isto escrevo estaõ expondo o resto de seus bens e suas vidas, para libertar um Reyno, que vaõ entregar a seu Soberano. Seguramente a gratidaõ pedia, que as acçoens heróicas que agora practicam, e as boas intençoens que mostram, tivessem outra recompensa, diversa da que infelizmente encontram.

Os Commissarios tem exigido commissoens desta propriedade Portugueza, até de navios, a respeito dos quaes elles nem tivéram algum trabalho, nem incorrêram em despeza alguma. Que diraõ os donos desta propriedade, em Portugal, quando se lhe appresentarem semelhantes despezas ? Eu assento, que naõ havendo estipulaçaõ prévia sobre a paga destes commissarios, nenhum direito tem elles a pedir, nem o Ministro Portuguez a conceder-lhe compensaçaõ alguma por seus serviços, devendo reputarse, que aceitaram aquelle emprego pela honra ou consideraçaõ, que dahi se lhes seguia, aliás terîam pedido salário, por seu trabalho. E quando fosse justo arbitrar-lho ¿ acaso saõ elles os que devem arbitrar-se a si mesmos a sua paga ? E quando assim fosse a respeito dos casos, em que elles tem tido algum trabalho, estou mui certo que nenhum jurado, em Inglaterra, lhe arbitraria compensaçaõ alguma nos casos em que nada fizéram, e se o Ministro Portuguez apoiar semelhante pretensaõ, certamente o poderaõ os proprietários obrigar a que pague, por sua fazenda e bens, os salários ou compensaçoens, que soffrer levarem estes Commissarios, quando por direito lhes naõ competir.

Eu naõ me persuado, que o Governo Inglez esteja informado das particularidades deste negocio, aliás terîa obrado de outra maneira; e os Portuguezes, que soffrem, devem procurar o remedio. O mal naõ foi casual, alguem teve a culpa delle, e se os Portuguezes appresentárem uma petiçaõ ao Parlamento, pódem estar seguros de que, este generoso Senado naõ soffrerá que a honra da sua Naçaõ fique maculada, pelo interesse de algum indivíduo; esta petiçaõ produzirá ao menos bom effeito de trazer á luz do dia os culpados dos males, que se soffrem, e se a culpa provem ou de individuos Inglezes, ou de motivos politicos do interesse da Inglaterra, certamente tem os aggravados o direito de esperar, e haõ de obter uma justa compensaçaõ.
Avaliar uma situação ocorrida há mais de duzentos anos por meio de artigos de um único jornal é algo arriscado. Poderíamos ler, pelo menos, os jornais ingleses, que segundo Hipólito José da Costa noticiavam os fatos até com simpatia pelos comerciantes portugueses. Mas a idéia destas postagens é antes observar o que o Correio noticiava e pensava, que esmiuçar esse episódio.

Mesmo assim, há que se pensar na confusão gerada pela loucura inglesa.

Parece-me totalmente sem sentido o apresamento inicial das naves, ainda mais numa frota protegida pela Grã-Bretanha e que se dirigia para território amigo, o Brasil. Se a preocupação era não favorecer a França, bastava terem deixado os navios em paz.

Uma vez que foram apresados, e caindo em si o governo britânico entendeu que a mercadoria deveria ser devolvida, ficaria a questão de a quem. Para isso teria sido necessário nomear comissários, que poderiam ser todos indicados pelo embaixador portugês, mas a solução acabou recaindo em uma comissão paritária.

Uma vez nomeados, tinha que assumir a responsabilidade pelos bens postos sob sua guarda, ou seja, não bastava que uma decisão posterior os mandasse entregar os bens aos proprietários ou ao embaixador português, mas que isso fosse feito em boa forma, com os devidos recibos que quitassem a responsabilidade.

Teria o embaixador capacidade e tempo para receber e dar quitação de tudo, ou, o que parece mais provável, foi postergando o recebimento dos bens, deixando a responsabilidade nos comissários bipartites, empurrando com a barriga?

Parece-me essa a alternativa mais óbvia, a qual, quando começou a se mostrar inviável, teve como solução a reunião com os comerciantes e a escolha de nova comissão.

A continuar em Mercadorias Portuguesas Apresadas pelos Britânicos - IV.

Fonte:
Correio Braziliense, nº 3, agosto de 1808. Disponível em Brasiliana USP (www.brasiliana.usp.br)