domingo, 22 de setembro de 2013

Juiz ou Ouvidor da Alfândega de Lisboa

Paulo Werneck

As duas leis abaixo regulavam as funções do Juiz da Alfândega de Lisboa. A primeira, de 1520, é complementada pela segunda, de 1568, quando sua denominação já havia sido alterada para Ouvidor.

Ambas estão coligidas numa coletânea produzida por Duarte Nunes de Leão, compilada ao tempo do Rei Dom Sebastião. As duas leis tem essa numeração para fins da organização do trabalho, não tendo sido numeradas quando publicadas.

Interessa conhecer suas funções, muito mais extensas que apenas arrecadar os tributos devidos à Coroa: o juiz ou ouvidor também tinha jurisdição para os litígios referentes às mercadorias, pagamentos, fretes e outras questões a elas relacionadas.

Entretanto a competência do Juiz ou Ouvidor da Alfândega não alcança as mercadorias pertencentes ao comércio com as possessões portuguesas em África, na Índia ou mesmo no Brasil (que em 1520 mal existia), afetas ao Juiz da Guiné & Índia.

A prática, na administração real portuguesa, era a especialização, solução bastante acertada para lidar com as dificuldades de circulação de informações, e a inexistência de sistemas de informação;

Tit. XII. Do juiz da alfandega de Lisboa, que agora ſe chama ouuidor.

¶ Lei. I. Do regimento de ſeu officio.

Ordenou elRei dom Manuel, que ſancta gloria aja, o regimento ao juiz da alfandega de Lisboa, deſta maneira. Primeiramente mandou, que o dito juiz conheceſſe dos feitos ciueis, que ſe perante elle moueſſem entre quaesquer peſſoas, aſsi naturaes como eſtrangeiros, ſobre quaesquer tratos & mercadorias, pagamẽtos, & entregas dellas, & ſobre quaesquer duuidas, & couſas, que dos ditos tratos & mercadorias dependerẽ, quando os autores perante elles quiſerem demandar, ſe já não tiuerem citados & demandados os reos, ou a outros juizos não pertencerem particularmente: porq~ então poderão declinar o dito juizo a ſeu tempo, ſendo os que ſe demandão, achados na dita cidade & ſeu termo.

1 ¶ Item conhecerá de quaesquer fretes, auarias, cuſtos, & ſoldos, que perante elle forem demandados, não ſendo de naos ou nauios de Guinee, Arguim, India, Braſíl, Zofala, ou de outros lugares, que pelas ordenações de Guinee & India ſão regulados: porque deſtes, & aſsi dos tratos, conuenças, & maleficios, que nos ditos lugares, & nauegação delles, ou que ſobre couſas delles, ou para elles ſe fazem, pertence o conhecimento ao juiz de Guinee & India, onde ſtá o procurador de S. A. para requerer o que a ſeu ſeruiço pertencer.

2 ¶ Item conhecerá dos feitos ciueis dos mercadores Gallegos, & outros quaesquer, que aa dita cidade trouxerem madeira, tauoado, bordos, fruta, & outras quaesquer mercadorias, & dos ſtantes na dita cidade, a q~ as ditas couſas entregarem, para lhas feitorizar, acerca do que tocar aas ditas mercadorias, fretes, & pagamentos dellas.

3 ¶ Item conhecerá dos feitos dos mercadores, que per mar trouxerem aa dita cidade mercadorias ou mantimentos, querendo elles demandar algũs moradores da dita cidade, ou ſeu termo, ou ſtantes, por quaesquer couſas, poſto que não ſeja ſobre ſuas mercadorias, nem couſas que dellas depẽdão, não tendo as taes peſſoas outro juiz per ſpecial priuilegio: por que eſſes poderão declinar o dito juizo da alfandega a ſeu tempo.

4 ¶ Item poderá conhecer, dos feitos ciueis dos mareantes moradores na dita cidade & ſeu termo, que nauegão de foz em fora, & dos mareantes eſtrangeiros & naturaes, que em quaesquer naos ou nauios aa dita cidade vierem, cerca de ſuas mercadorias, & couſas que carregarem, ou deſcarregarem, & acerca do que tocar ao repairo & corregimento dos ditos nauios, & acerca de outras couſas quaesquer, que a ſuas nauegações, fretes, & ſoldos pertencem, & dos feitos que elles entre ſi, ou elles cõtra outros, ou outros contra elles tiuerem.

5 ¶ Item poderá conhecer de feitos ciueis de barqueiros ou ſeus companheiros, que entre ſi, ou contra outras peſſoas tiuerem, aſsi os naturaes da cidade & ſeu termo, como outros de fora, & acerca do que tocar aos fretes, pagamentos, partilhas, corregimentos, apparelhos, partidas, ou ſtadas, carregas, ou deſcarregas das ditas barcas, por o dito juizo ſtar em lugar, onde podem requerer ſua juſtiça mais facilmente.

6 ¶ Item poderá conhecer de quaesquer ſcripturas deſaforadas, per que forem uaesquer peſſoas no dito juizo demandadas, ſendo os demandados moradores, ou ſtãtes na dita cidade ou ſeu termo, ou nella achados, poſto que não ſeja ſobre tratos & mercadorias: com tãto que não ſeja ſobre fretes, ſoldos, ou outras couſas, de Guinee, & lndia, ou de lugares, q~ ſe regulao per as leis de Guinee & India: porque hi não tratarão as cauſas, ſenão em o juizo de Guinee & India.

7 ¶ Item fará três audiências na ſemana. ſ. aa ſegũda, quarta, & ſeſta feira, aa hora de vespera, ouuindo primeiro os procuradores, que no auditorio forem preſentes, ſegundo ſuas antiguidades, & os que ao começo da audiencia não vierem, ſerão ouuidos aſsi como vierem, não ſe aſſentando primeiro, que os que já ſtauão aſſentados, nem ſendo primeiro que elles ouuidos. E despois ouuindo os mercadores & partes, cõ toda moderação & temperança, ſem palauras de ſcandalo, ou taes, que não conuenhão, a quem há de gouernar, & miniſtrar juſtiça: & fazendo as audiencias quietas & caladas, não conſentindo que ſe faça, ou diga couſa em desprezo da juſtiça.

8 ¶ Item os eſcriuães do dito juizo da alfandega irão ſtar na dita caſa, cada dia pela menhaã, & aa tarde, para hi tirarem as inquirições, & fazerem o que pertencer a ſeu officio, para bom despacho das partes E não indo pagarão por cada dia que não forem, hum cruzado, ametade para as deſpeſas do auditorio, ou para os preſos pobres, não hauendo neceſsidade do dito dinheiro, & ametade para as partes que forem deſauiadas, não teendo impedimento que os eſcuſe. E os porteiros do dito juizo, ſtarão ſempre na dita caſa com os eſcriuães, para quando forẽ requeridos, fazerem as citações, penhoras, & execuções. E ſob a mesma pena, ſtará com os eſcriuães o enqueredor a menhaã & tarde.

9 ¶ Item fará contar o dito juiz com muita diligencia os feitos, pelo contador do dito juizo: ſaluo ſendo elle negligẽte. porque então os mandará contar a outro, que hauerá ſeu ſalario inteiro.

10 ¶ Item poderá conhecer de feitos de peſſoas, que deuerem algũa couſa a S. A. na dita alfandega de compras, ou dereitos, poſto que ſejão peſſoas eccleſiaſticas ou religioſas: porque para arrecadação dos dereitos de S. A. bem podem ſer demandados perante as juſtiças delRei, ſegundo per capitulos de cortes foi acordado ẽtre os Reis paſſados & a clereſia. Do que não tomará conhecimento, ſenão quando o almoxariffe da alfandega, a que a execução pertencer, ou o juiz da dizima da dita alfandega, ou os rẽdeiros della, perante elle queirão demandar.

11 ¶ Item conhecerá dos feitos dos Ingreſes, no modo, que no foral, que de S. A. teem he mandado.

12 ¶ Item conhecerá de quaesquer feitos ciueis ou crimes, em que forem demandados ou accuſados o contador moor, ou qualquer cõtador da dita cidade, & eſcriuães, & porteiros dos cõtos, juiz da dizima da alfãdega, almoxariffe, eſcriuães, recebedores, porteiro, & hõmes della, eſcriuães, enqueredor, cõtador, & porteiros do dito juizo, ou em que elles demandẽ, ou accuſem outros. E que outras juſtiças não tomẽ dos taes feitos conhecimento, pela obrigação que teem, de ſtar todolos dias na dita alfandega. Porem não poderão os ſobreditos officiaes citar peſſoa algũa, para o dito juizo, ſaluo os moradores ou ſtantes na dita cidade, ou ſeu termo, ou dez legoas ao redor della, ſegundo ſe conteem no priuilegio dos eſcriuães da dizima da dita alfandega: ſem embargo da ordenação, que diz, que os julgadores não conheção dos negocios, que tocão aos eſcriuães & officiaes de ſeus juizos. E o dito juiz despachará os feitos das ditas peſſoas com toda breuidade, & de ſuas ſentenças dará appellação nos caſos, em que ſe deue fazer. E querendo os ditos officiaes demandar, ou accuſar em outros juizos, ou nelles responder, podeloão fazer, como ſe eſle priuilegio não tiuerão. E acontefcendo, que elles citem algũs priuilegiados outros, ou que ſejão delles citados, o autor ſeguirá o foro do reo: ſaluo ſe a contenda for com algum deſembargador, ou moedeiro: porque o priuilegio dos deſembargadores & moedeiros precede a eſte, quer ſejão reos, quer autores.

13 ¶ Item poderá conhecer de quaesquer maleficios commettidos das portas a dentro da dita alfandega: & delles poderão deuaſſar, nos caſos q~ forem de deuaſſar: & terá a obrigação de deuaſſar nos ditos maleficios, que os outros julgadores terião, ſendo em outra parte commettidos. E procederá contra os culpados, como lhe parecer juſtiça. E das ſentẽças que der, appellarão para a relação da caſa do ciuel.

14 ¶ Item demandando algũas peſſoas perante o dito juiz, ſoldos, ou fretes, que diſſerem lhe ſerem deuidos, logo na primeira audiencia, perante os reos demandados, ou ſeus procuradores, ſe forem preſentes, ou aa ſua reuellia, ſe elles forem citados para a dita audiẽncia, & nella não parecerem, o dito juiz dará juramento aos autores, ſe lhe ſam deuidos os ditos ſoldos ou fretes. E jurando que ſi, fará logo que os reos ponhão em juizo outro tanto dinheiro, quanto os autores jurarem: & ſe depoſitará em mão de hua peſſoa abonada, não hauendo no dito juizo peſſoa ordenada para iſſo. E fará eſcreuer os juramentos, que os ditos autores fizerem, que per elles ſerão aſsinados. E ſendo o dinheiro aſsi depoſitado, ouuirá as partes, & procederá nos feitos, como for juſtiça. E prouando os autores tanto, per que os reos deuão ſer condenados, o juiz os condẽnará per ſuas ſentenças, & mandará fazer execução per ellas, tanto que forem paſſadas pela chancellaria, ſe as partes não appellarem. E fará entregar o dinheiro depoſitado aos ditos autores, com a condenação das cuſtas, que lhe forem julgadas. E achando o juiz, que os reos forão mal demandados, & os autores jurarão falſamente, alem de abſoluer os reos, condẽnará ſempre os autores nas cuſtas em dobro, & em qualquer outra emenda & corregimento, que lhe parecer, ſegundo for a malicia. E ſerão preſos, & os autos de ſuas priſoẽs & dos dito juramẽtos ſerão leuados aa dita relação, para nella lhes ſer dada a pena, q~ merecerem pelo juramento. E quanto he ao depoſitar do dinhero, o juiz o cõprirá aſsi, ſob pena de cem cruzados para o hoſpital de todolos Sanctos ſem niſſo entender nenhũa das relações, nem outras algũas juſtiças: por quanto aos ditos juizes deu o dito ſenhor todo poder & alçada para iſſo, nos feitos, que ao dito juizo pertencem.

¶ 15 Item o juiz da alfandega terá alçada ate três mil reaes.

¶ 16 E houue por bem o dito ſenhor, que os eſcriuães do dito juizo eſcreueſſem nos feitos dos hospitaes & confrarias, que os mercadores teem em ſancto Spiritu, & ſam Franciſco, como ſempre fizerão: poſto que ao juiz da dizima da alfandega foſſe commettido o conhecimento dos ditos feitos, & a mais adminiſtração dos ditos hospitaes & confrarias. A 24. de Abril de. 1520. Fol. 23. do liuro. 4.

¶ Lei. II. Que o ouuidor da alfandega tenha vinte cruzados de alçada.

Ha elRei noſſo ſenhor por bem, que o onuidor da alfandega de Lisboa, tenha alçada ate quantia de vinte cruzados, ſem appelção nem aggrauo. Per hua prouiſão de 2. de Iunio de. 1568. Fol. 177. do liu. 5.
Quanto à ortografia do texto, é fácil perceber que o "u" também tinha significado de "v", e que o "ſ" é uma outra forma de escrever "s", nunca ao final da palavra. A sequencia "q~" difere do original, em que o til está sobre a letra, mas tal caractere não está disponível para ser usado. Entre eliminar o til ou simplesmente escrevê-lo ao lado, foi preferida a segunda opção.

Quanto ao regimento em si, além da observação inicial, sobre a amplitude da jurisprudência, muito além das causas propriamente aduaneiras, cumpre ressaltar alguns pontos.

O primeiro, tendo em vista a maneira com que se tem portado alguns ministros do Supremo Tribunal Federal,  é o final do item 7, prescrevendo toda moderação & temperança, sem palavras escandalosas, ou outras que não sejam convenientes para quem julga. Se Dom Manuel fosse ainda nosso monarca, certamente iria chamar as falas alguns membros do supremo.

O item 8 também é muito interessante, e provocaria uma reviravolta no serviço público, se fosse implementado: os servidores que faltassem ao serviço tinham que pagar uma multa, metade da qual seria entregue aos cidadãos que perderam a viagem e não foram atendidos.

O item 9 também seria uma revolução: se o servidor não trabalhar com diligência, o chefe simplesmente chama outro, que faz o serviço e recebe a paga que seria dada ao primeiro... 

Já o item 14 teria o condão de reduzir a busca desenfreada pelo Poder Judiciário, em ações sem base. Se o autor afirmar fatos falsos em relação ao réu, não apenas paga as custas em dobro, como é preso por falso testemunho. Que beleza: seria o fim da irresponsabilidade.

A segunda lei, de 1568, altera a alçada de três mil reais para vinte cruzados. Segundo o Dicionário da Porto Editora, um cruzado valia 400 reais, logo 20 cruzados valiam 8.000 reais. Com a palavra os historiadores econômicos, para nos dizerem se a conversão era essa e se com a inflação da época, a alçada do então ouvidor aumentou ou não.

Fica em aberto a compreensão das duas alçadas. Pela interpretação literal da lei de 1520, o Juiz da Alfândega não poderia julgar casos cujo valor excedesse3.000 reais (7 cruzados e meio). Pela lei de 1568, não se sabe qual o valor máximo das causas que poderiam ser julgadas pelo então Ouvidor da Alfândega, mas que não haveria recurso para os casos até 20 cruzados (8.000 reais). São situações distintas.

Fonte:

LIAM, Duarte Nunez do. Leis Extravagantes Collegidas e Relatadas pelo Licenciado Duarte Nunez do Liam per Mandado do muito alto & muito poderoſo Rei Dom Sebastiam noſſo ſenhor. Lisboa: Antonio Gonçalvez, 1619.

PORTO EDITORA. Infopédia. Disponível em www.infopedia.pt.