quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Isenção de alimentos

Paulo Werneck

Pieter Brueghel, o Velho: Provérbios Holandeses
Fonte:Wiki

Hoje ainda não temos uma lei que efetivamente elimine dos alimentos o peso dos tributos. É verdade que a Constituição Federal determina que o IPI deverá ser seletivo em função da essencialidade do produto (Art. 153, IV c/c § 3º, I), mas, no caso do ICMS, apenas permite a seletividade, também com base na tal essencialidade (Art. 155, II c/c § 2º, IIII).

Será que estamos andando para trás? Segundo João Pedro Ribeiro, houve uma lei feita nas Cortes de Coimbra, em 1211 (1249 na Era de César), que isentava a venda de alimentos do pagamento de tributos:
Era 1249 (An. 1211)
Leis feitas nas Cortes de Coimbra, em que o mesmo Snr.
.....
2.ª Que não se levasse direito pela venda dos comestiveis.
L. A. Ibid. F. A. S. p. 25. col. 2. A. Liv. 2. tit. 31.
.....
onde "L. A." era abreviação "Codice de Leis Antigas no R. Archivo, ou L.º A. da Camara do Porto", "F. A. S." abreviação de Foral Antigo de Santarem no R. Archivo, impresso no Tomo 4. dos Ineditos da Academia, Tomo 4, pag. 531" e "A." abreviação de "Ordenação Alfonsina".

Essa lei podemos encontrar menos resumida no Livro das Leis e Posturas:
Estas som as leys e as posturas que fez o muy nobre Rey Dom afonsso de Portugal e mandou aos Reys que ueesem depos el que as guardassem.
.....
Como ElRey manda aos seus alcaydes que nom leuem nemjgalha do que uenderem
Maao costume dantjgo soya seer assy em Cojnbra como en todalas vilas da nossa estremadura come en todalas partes do Reyno quo assi nos come aqueles que de nos tijnham terras ou alcaydarias leuauam do todalas cousas de comer que uendessem a terça parte E esto he gram dano e perJujzo dos mezquinhos. A qual cousa pera todo senpre estabeleçemos que nom ualha ¶ Estabeleçemos que os nossos oueençaes nem aqueles que as nossas terras ou alcaydarias teuerem nom leuem as cousas sobredictas segundo o costume sobredicto Mais conprem sas cousas segundo dereyta estimaçom assy commo as conprarem os vezinhos E sse algũu dos nossos oueençaes dauandictos contra esto quiserem hir peyte quinhentos. soldos. e faça coRegimento aguisado ao que as cousas tomarem
Como costuma ocorrer na leitura de antigos diplomas legais, enfrentamos diferenças ortográficas e palavras caídas em desuso.

Quanto à ortografia, um pouco de boa vontade ajuda, e não é difícil perceber que "j" às vezes vale "i",  que "u" pode significar "v", e mesmo que "R" pode significar "rr"...

Quanto ao desconhecimento de alguns termos, podemos nos socorrer em velhos dicionários e vocabulários.Assim encontramos, em Bluteau, não "mezquinho", mas "mesquinho", com a acepção de "desgraçado, desaventurado". Ele dá "peita" como suborno, o que não faz nenhum sentido no texto, mas Viterbo nos informa que peitar (não peytar) significava, nos séculos XIII e XIV, "satisfazer, pagar". Finalmente, trocando "R" por "rr", temos "coRegimento" como "corregimento", que também Viterbo nos ensina se tratar de  "restauração, conserto, reparo".

Daí podemos entender a lei, que diz que os servidores do Rei não podem mais, como era costume, tirar um terço dos alimentos que os seus desventurados súditos levavam ao mercado para vender, mas que os deveriam comprar pelo preço corrente, o mesmo que pagavam os "vezinhos", ou seja, os outros súditos. Além disso estabelece uma multa que 500 soldos a ser paga (peytada) pelo servidor recalcitrante, que além de pagar a multa teria que indenizar (fazer coRegimento) o prejudicado.

Essa lei foi confirmada pelo Rei Dom Afonso V, o Africano, como podemos constatar no segundo volume das Ordenações Afonsinas:
TITULO XXXI.
Que nom leve ElRey, ou quem delle Terra, ou Alcaydaria tever, a terça parte das couſas, que ſe venderem para comer.
ElRey Dom Affonfo o Segundo em feu tempo fez Ley, de que o theor tal he.
1 Maao custume antigo foya a feer assy em Coimbra, como em todalas Villas da Noſſa Eſtremadura, como em todalas partes do noſſo Regno, que aſſy Nós, como os que de Nós tinhão Terras, ou Alquaidarias, levavamos de codalas couſas de comer, que vendeſſem, a terça parte. E eſto he em graõ dapno, e prejuizo dos miſquinhos, a qual couſa pera todo ſempre Eſtabelecemos que nom valha. E Eſtabelecemos que Noſſos Ovençaaes, nem aquelles, que de Nós teverem Terras, ou Alquaidarias, nom levem as couſas ſobreditas, ſegundo o coſtume ſobredito, mais comprem eſſas couſas, ſegundo direita eſtimaçom, aſſy como as comprarem os vizinhos. E ſe alguũs dos noſſos Ovençaaes davamditos contra aqueeſto quizerem hir, peitem quinhentos ſoldos, e ſaçam corregimento aguiſado aos que as couſas tomarem.
2 A qual Ley viſta por nos, por nos parecer juſta, e razoada, Mandamos que ſe guarde, como ſe em ella conthem.
Uma lei em tudo benvinda aos dias de hoje, não apenas tornando a cesta básica mais accessível ao bolso do povo, como vedando o costume que tem algumas "otoridades" de não pagar o que consomem...

Fontes:
BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico ... Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712 - 1728. 8 v.
PORTUGAL. Livro das Leis e Posturas. Leitura paleográfica de Maria Teresa Campos Rodrigues. Lisboa: Universidade de Lisboa. Faculdade de Direito, 1971.
PORTUGAL. Ordenaçoens do Senhor Rey D. Affonso V. Volume 2. Coimbra: Na Real Imprensa da Universidade, 1792.
RIBEIRO, João Pedro. Additamentos e Retoques á Synopse Chronologica. Lisboa: Academia Real das Sciencias de Lisboa, 1829.
VITERBO, Fr. Joaquim de Santa Rosa de. Elucidario das Palavras, Termos e Frases que em Portugal Antigamente se Usaram. Lisboa: A. J. Fernandes Lopes, 1865.