domingo, 1 de dezembro de 2013

Cortes de Lamego

Paulo Werneck

Jorge Colaço (1868 - 1942): Batalha de Ourique
Fonte: Wiki

José Anastácio Figueiredo (1706?-1805) informa, na sua Synopsis Chronologica, a existência das Leis das Cortes de Lamego, que teriam sido reunidas em 1143, após a vitória do portugueses, comandados por Afonso Henriques, na batalha de Ourique (25 de julho de 1139), em que venceram tropas mouras numericamente superiores, e, segundo a tradição, levou-o a se autoproclamar Rei de Portugal ainda no campo de batalha.

As Cortes eram assembléias em que se reuniam representantes dos três Estados - nobreza, clero e povo - para decidir sobre leis e tributos. As Cortes de Lamego, cuja existência é lendária, ou seja, não se sabe ao certo se teriam existido ou não, muito provavelmente não, teriam dado nascimento formal ao Reino de Portugal, elegendo Afonso Henriques como primeiro rei (Afonso I), e estabelecendo algumas leis - sucessão ao trono, titulos de nobreza, crimes e castigos.

Tendo ou não existido tal assembléia, o fato é que Figueiredo enuncia onde está transcrita sua ata, a saber na Monarchia Lusitana, de Frei Antonio Brandão (1584-1637), e em diversos outros livros, posteriores.

Brandão, o primeiro a transcrevê-la, expressa suas dúvidas sobre a autenticidade da cópia que tinha em mãos. Alexandre Herculano a ela se refere como
"invenção de algum dos falsários do século XVI [...] abaixo da critica, se não fosse o haverem sido consideradas desde o século XVII como as leis fundamentaes do nosso paiz"
De qualquer forma, eis a transcrição do controverso texto:
Em nome da ſancta e indiuidua Trindade Padre, Filho, & Spirito ſanto, que he indiuisa, & inseparauel. Eu Dom Afonſo filho do Conde D. Henrique, & da Rainha Dona Tareja neto do grande D. Afonſo Emperador das Eſpanhas, que pouco ha que pella diuina piedade fui ſublimado á dinidade Rey. Ia q͂ Deos nos concedeo algũa quietação, & com ſeu fauor alcanſamos vitoria dos Mouros noſſos inimigos, & por eſta cauſa eſtamos mais deſaliuados, porque não ſoceda deſpois faltarnos o tempo cõuocamos a cortes todos os que ſe ſeguem. O Arcebiſpo de Bragâ, o Biſpo de Viſeu, o Biſpo do Porto, o Biſpo de Coimbra, o Biſpo de Lamego, & as peſſoas de noſſa Corte que ſe nomearaõ abaxo, & os procuradores da boa gente cada hum por ſuas Cidades, conuem a ſaber por Coimbra, Guimaraẽs, Lamego, Viſeu, Barcellos, Porto, Trancoſo, Chaues, Caſtello Real, Bouzella, Paredes velhas, Cea, Couilham, Monte maior, Eſgueira; Villa de Rey, & por parte do Senhor Rey Lourenço Viegas auendo tambem grande multidáo de Mõges, & de clerigos. Ajũtamonos em Lamego na Igreja de Santa Maria de Almacaue. E aſſentouſe el Rey no trono Real ſem as inſignias Reaes, & leuantandoſe Lourenco Viegas procurador del Rey diſſe.

Fezuos ajuntar aqui el Rey D. Afonſo, o qual leuantaſtes no Cãpo de Ourique, para que vejais as letras do ſanto Padre, & digais ſe quereis que ſeja elle Rey. diſſeraõ todos. Nos queremos que ſeja elle Rey. E diſſe o procurador: Se aſsi he voſſa vontade, dailhe a inſignia Real. E diſſeraõ todos: Demos em nome de Deos. E leuantouſe o Arcebiſpo de Braga, & tomou das mãos do Abbade de Loruão h-ua grande coroa de ouro chea de pedras precioſas que fora dos Reys Godos, & a tinhão dada ao Moſteiro, & eſta puſerão na cabeça del Rey, & o ſenhor Rey com a eſpada nua em ſua mão, com a qual еntrоu na batalha diſſe. Bendito ſeja Deos que me ajudou, com eſta eſpada vos liurei, & venci noſſos inimigos, & vos me fizeſtes Rey, & companheiro voſſo, & pois me fizeſtes, façamos leys pellas quais ſe gouerne em paz noſſa terra. Diſſeraõ todos: queremos ſenhor Rey, & ſomos contentes de fazer leis, quais vos mais quiſerdes, porque nos todos com noſſos filhos & filhas, netos & netas eſtamos a voſſo mandado. Chamou logo o ſenhor Rey os Biſpos, os nobres, & os procuradores, & diſſeraõ entre ſi, façamos primeiramẽte leis da herança & ſucceſſaõ do Reyno, & fireraõ eſtas que ſe ſeguem.

Viua o ſenhor Rey Dõ Afonſo, & poſſua o Reyno. Se tiuer filhos varoẽs viuão & tenhaõ o Reino, de modo que não ſeja neceſſario tornalos a fazer Reys de nouo. Deſte modo ſocederaõ. Por morte do pay herdarâ o filho, deſpois o neto, então o filho do neto, & finalmente os filhos dos filhos, em todos os ſeculos para ſempre.

Se o primeiro filho del Rey morrer em vida de ſeu pay, o ſegundo ſerà Rey, & eſte ſe falecer o terceiro, & ſe o terceiro o quarto, & os mais que ſe ſeguirem por eſte modo. Se el Rey ſalecer ſem filhos, em caſo que tenha irmão, poſſuirà o Reyno em ſua vida, mas quando morrer não ſerá Rey ſeu filho, sé primeiro o fazerem os Biſpos, os procuradores, & os nobres. da Corte del Rey, ſe o fizerem Rey ſerà Rey, & ſe o não elegerem, nao reinará.

Diſſe deſpois Lourenço Viegas Procurador del Rey aos outros procuradores. Diz el Rey, ſe quereis que entrem as filhas na herança do Reyno, & ſe quereis fazer leis no que lhes toca: E deſpois que altercaraõ por muitas horas, vieraõ a concluir, & diſſeraõ. Tambem as filhas do ſenhor Rey ſaõ de ſua decendencia , & aſsi queremos que ſucedão no Reyno, & que ſobre iſto ſe façaõ leis, & os Biſpos & nobre fizeraõ as leis neſta forma.

Se el Rey de Portugal naõ tiuer filho varão, & tiuer filha, ella ſerá a Rainha tanto que el Rey morrer; porem ſerà deſte modo, nao caſará ſe não com Portugues nobre, & eſte tal ſe não chamará Rey, ſe não deſpois que tiuer da Rainha filho varão. E quando for nas Cortes, ou autos publicos, o marido da Rainha irâ da parte eſquerda, & não porá em ſua cabeça a Coroa do Reyno.

Dure eſta ley para ſempre, que a primeira filha del Rey nunca caſe ſe não com portugues, para que o Reyno não venha a eſtranhos, & ſe caſar com Principe eſtrangeiro, não herde pello meſmo caſo; porque nunca queremos que noſſo Reyno ſaya fora das mãos dos Portugueſes, que com ſeu valor nos fizeraõ Rey ſem ajuda alhea, moſtrando niſto ſua fortaleza, & derramando ſeu ſangue.

Eſtas ſaõ as leis da herança de noſſo Reyno, & leo as Alberto Cancellario do ſenhor Rey a todos, & diſſeraõ, boas ſaõ, juſtas ſaõ, queremos q͂ valhão por nos, & por nodſſos decendertes, que deſpois vierem.

E diſſe o Procurador do ſenhor Rey. Diz o ſenhor Rey. Quereis fazer leis da nobreza, & da juſtica? E reſponderaõ todos. Aſsi o queremos, façaõſe em nome de Deos, & ſizerrõ eſtas.

Todos os decendentes de ſangue Real, & de ſeus filhos & netos ſejão nobiliſsimos. Os que naõ ſaõ decendentes de Mouros, ou dos infieis Iudeus, ſendo Portugueſes que liurarem a peſſoa del Rey, ou o ſeu pendão, ou algũ filho, ou genro na guerra, ſejão nobres. Se acontecer que algum catiuo dos que tomarmos dos infieis, morrer por não querer tornаг a ſua infidelidade, & perſeuerar na lei de Chriſto, ſeus fllhos ſejão nobres. O que na guerra matar o Rey contrario, ou ſeu filho, & ganhar o ſeu pendão, ſeja nobre. Todos aquelles que ſaõ de noſſa Corte, & tem nobreza antiga, permaneçaõ ſempre nella. Todos aquelles que ſe acharaõ na grande batalha do Campo de Ourique, ſejaõ como nobres, & chaméſe meus vaſſalos aſsi elles como ſeus decendentes.

Os nobres ſe fugirem da batalha, ſe ferirem algũa molher com efpada, ou lança, fe não libertarẽ a el Rey, ou a ſeu filho, ou a ſeu pendão com todas ſuas forças na batalha, ſe derem teſtemunho falſo, ſenão falarẽ verdade aos Reys, ſe falarem mal da Rainha, ou de ſuas filhas, ſe ſe forẽ para os Mouros, ſe furtarem as couſas alheas, ſe blasfemarem de noſſo Senhor Ieſu Chriſto, ſe quiſerem matar el Rey, não ſejaõ nobres, nem elles, nem ſeus filhos para ſempre.

Eſtas ſaõ as leis da nobreza, & leo as o Cancellario del Rey, Alberto a todos. E reſpõderaõ, boas ſaõ, juſtas ſaõ, queremos que valhaõ por nos, & por noſſos decẽdentes que vierem deſpois de nos. Todos os do Reyno de Portugal obedeçam a el Rey, & aos Alcaides dos lugares que ahi eſtiuerem em nome del Rey, & eſtes ſe regeraõ por eſtas leis de juſtiça, O homem ſe for comprehendido em furto, pella primeira, & ſegunda vez o poraõ meio deſpido em lugar publico, aonde ſeja viſto de todos, ſe tornar a furtar, ponhaõ na teſta do tal ladraõ hum ſinal com ferro quente, & ſe nem aſsi ſe emendar, & tornar a ſer cõprehendido em furto, morra pello caſo, porem não o mataraõ ſem mandado del Rey.

A molher ſe cometer adulterio a ſeu marido com outro homem, & ſeu proprio marido denunciar della â juſtiça, ſendo as teſtemunhas de credito, ſeja queimada deſpois de o ſazerẽ a ſaber a el Rey, & queimeſe juntamente o varaõ adultero com ella. Porem ſe o marido não quiſer que a queimem, não ſe queime o cõplice, mas fique liure; porque não he juſtiça que ella viua, & que o matem a elle.

Se alguem matar homem ſeja quem quer que for, morra pello caſo. Se alguem forçar virgem nobre, morra, & toda ſua fazenda fique a donzella injuriada. Se ella não for nobre, caſem ambos, quer o homem ſeja nobre, quer naõ.

Quando alguem por força tomar a fazenda alhea, va dar o dono querella delle à juſtiça, que farà com que lhe ſeja reſtituida ſua fazenda.

O homem que tirar langue a outrem com ferro amolado, ou ſem elle, que der com pedra, ou algum pao, o Alcaide lhe farà reſtituir o dano, & o farà pagar dez marauedis. O que fizer injuria ao Agoazil, Alcaide, Portador del Rey, ou a Porteiro, ſe o ferir, ou lhe façã o ſinal com ferro quente, quando não pague 50. marauedis, & reſtitua o danno.

Eſtas ſaõ as leis de juſtica, & nobreza, & leoas o Cancellario del Rey, Alberto a todos, & diſſeraõ, boas ſaõ, juſtas ſaõ, queremos que valhaõ por nos, & por todos noſſos decendentes q͂ deſpois vierem.

E diſſe o Procurador delRey Lourenço Viegas, quereis que el Rey noſſo ſenhor vâ as Cortes del Rey de Leaõ, ou lhe de tributo, ou a algũa outra peſſoa tirando ao ſenhor Papa que о сбfirmou no Reyno? E todos ſe leuantaraõ, & tendo as eſpadas nuas poſtas em pè diſſeraõ. Nos ſomos liures, noſſo Rey he liure, noſſas mãos nos libertaraõ, & o ſenhor que tal conſentir, morra, & ſe for Rey, não reine, mas perca o ſenhorio. E o ſenhor Rey ſe leuantou outra vez com a Coroa na cabeça, & eſpada nua na maõ ſalou a todos. Vos ſabeis muito bem quantas bãtalhas tenho ſeitas por voſſa liberdade, ſois diſto boas teſtemunhas, & o he també meu braco, & eſpada; ſe alguem tal couſa conſentir, morra pello meſmo caſo, & ſe for ſilho meu, ou neto, não reine; & diſſeraõ todos: boa palaura, morra. El Rey ſe for tal que conſinta em dominio alheo, não reine; & el Rey outra vez: afsi ſe faça, &c.
O texto nada apresenta do ponto de vista tributário ou comercial. De curioso, as penas de alguns crimes.

Furto teria sido apenado na primeira e segunda ocorrências apenas com a exposição à execração pública, uma pena leve sem dúvida, mas se o meliante não tomasse tento, na terceira vez a pena seria capital.

Adultério, todavia, teria pena capital desde o início, para ambos, salvo se o marido traído perdoasse a esposa, caso em que o outro também o seria.

Para estupro a pena dependia da qualidade da vítima: se nobre, morte ao estuprador, cujos bens seriam da vítima; se plebéia, casamento, mesmo que o estuprador fosse de qualidade.

O texto também relaciona alguns cargos: procurador do rei (que ainda não o era...), agoazil, alcaide, portador del rey e porteiro.

Agoazil parece ser outra grafia para alguazil, algozil, guazil. Segundo Houaiss seria um juiz ordinário de primeira instância, oficial de administração ou de justiça, de posto inferior; oficial de diligências; meirinho, beleguim, esbirro.

Alcaide seria um governador de castelo ou região, com jurisdição civil e militar, ou um funcionário incumbido de cumprir as determinações judiciais; oficial de justiça. Na época talvez a primeira definição seja mais adequada.

Portador del Rey, poderia ser um mensageiro real, ou arauto.

Finalmente porteiro, que como hoje era alguém encarregado de abrir e fechar a porta de uma prédio, quando chegassem ou saissem pessoas, permitindo ou não a entrada, parece que tinha atribuições mais amplas, cuidando do local como um chefe de gabinete faria hoje em dia.

Fontes:
BRANDÃO, Antonio. Monarchia Lvsitana, Terceira Parte: Que contem a Hiſtoria de Portugal deſdo Conde Dom Henrique, até todo o reinado del Rey Dom Afonſo Henriques. Pag. 143vers-145. Lisboa: Pedro Caresbeck, 1631.
FIGUEIREDO, José Anastácio. Synopsis chronologica de subsidios ainda os mais raros para a historia e estudo critico da legislação portugueza. Tomo I: desde 1143 até 1549. Pag. 1-2. Lisboa: Oficina da Real Academia de Sciencias, 1740.
HERCULANO, Alexandre. Historia de Portugal desde o começo da Monarchia até o fim do reinado de Affonso III. Terceira Edição. Tomo Primeiro. Pag. 510. Lisboa: Casa da Viuva Bertrand e Filhos, 1863.