domingo, 19 de fevereiro de 2017

Certidão de Nascimento de Portugal

Paulo Werneck

O Reino de Portugal na península Ibérica (1210)
Fonte: Wikipedia

O Conde dom Henrique de Borgonha (1066-1112), casado com Infanta dona Teresa (1080-1130), filha ilegítima do Rei Afonso VI (1047-1109), de Leão e Castela, recebeu o Condado Portucalense do seu sogro, tornando-se Conde de Portucale.

Vindo a falecer o conde, dona Teresa tornou-se regente do Condado e seguiu uma linha de alianças políticas que se chocou com as ideias do filho Afonso Henriques (1109-1185), quem, em 1128 derrotou a própria mãe na batalha de São Mamede, assegurando o condado para si.

Tendo como meta obter a independência do condado, transformando-o em reino, bem como expandi-lo para o sul, expulsando os mouros, Afonso Henrique passou a vida de batalha em batalha, ora defendendo as fronteiras do norte e oeste contra a cobiça dos outros reinos cristãos, ora conquistando as terras do sul.

Essa epopeia teve como marco importantíssimo o reconhecimento de Afonso Henrique como rei pelo tratado de Zamorra, em 5 de Outubro de 1143, firmado com seu primo, Afonso VII de Leão e Castela (1105-1157), tratado esse do qual não sobreviveu nenhuma cópia.

Todavia, apesar de essa ser considerada a data da fundação de Portugal e de início da I Dinastia, o reconhecimento mundial só veio a ocorrer em 1179, com a Bula Manifestis probatum, de Alexandre III (1100-1181), pois à época era o Papa o árbitro da partida...

Podemos considerar essa bula, cujo texto está transcrito abaixo, em Latim, como sendo a Certidão de Nascimento de Portugal, espelhando não apenas o reconhecimento do novo reino por Leão e Castela, mas pelo mundo europeu-cristão.
Alexander episcopus, seruus seruorum Dej.

Karissimo in Christo filio Alfonso, jllustri Portugalensium regj eiusque heredibus jn perpetuum.

Manifestis probatum est argumentis quod, per sudores bellicos et certamina militaria, inimicorum christiani nominis intrepidus extirpator et propagator diligens fidej christiane, sicut bonus filius et princeps catholicus, multimoda obsequia matri tue sacrosancte ecclesie impendistj dignum memoria nomen et exemplum imitabile posteris derelinquens. Equum est, autem, ut quos, ad regimen et salutem populj, ab alto dispensatis celestis elegit apostolica sedes affectione sincera diligat et in iustis postulationibus studeat efficaciter exaudire.

Proinde, nos, attendentes personam tuam, prudentia ornatam, iusticia preditam atque ad populj regimen idoneam, eam sub beati Petri et nostra protectione suscipimus et regnum Portugalense, cum integritate honoris regni et dignitate que ad reges pertinet necnon et omnia loca que, cum auxilio celestis gratie, de sarracenorum manibus eripueris, in quibus ius sibi non possunt christianj principes circumpositj uendicare, excellentie tue concedimus et auctoritate apostolica confirmamus.

Vt, autem, ad deuotionem et obsequium beatj Petri, apostolorum principis, et sacrosancte romane ecclesie uehementjus accendaris, hec ipsa prefatis heredibus tuis duximus concedenda eosque super his que concessa sunt, Deo propitio, pro iniunctj nobis apostolatus officio, defendemus. Tua itaque intererit, filj karissime, ita circa honorem et obsequium matris tue sacrosancte romane ecclesie humilem et deuotum existere, et sic te ipsum in ejus oportunitatibus et dilatandis christiane fidej finibus exercere, ut de tam devoto et glorioso filio sedis apostolica gratuletur et in eius amore quiescat.

Ad indicium, autem, quod prescriptum regnum beatj Petri iuris existat, pro amplioris reuerentie argumento, statuistj duas marcas auri, annis singulis, nobis nostrisque successoribus persoluendas. Quem utique censum, ad utilitatem nostram et successorum nostrorum, Bracharensi archiepiscopo quj pro tempore fuerit, tu et successores tuj curabitis assignare.

Decernimus, ergo, ut nullj omnino hominum liceat personam tuam aut heredum tuorum uel etiam prefatum regnum temere perturbare aut ejus possessiones auferre uel ablatas retinere, minuere aut aliquibus uexationibus fatigare. Si qua, igitur, in futurum ecclesiastica secularisue persona hanc nostre constitutionis paginam, sciens, contra eam temere uenire temptauerit, secundo tertioue commonita, nisi reatum suum digna satisfactione correxerit, potestatis honorisque suj dignitate careat reamque se diuino iudicio existere de perpetrata iniquitate cognoscat et a sacratissimo corpore ac sanguine Dej et Dominj Redemptoris Nostri Ihesu Christi aliena fiat atque, in extremo examine, districte ultionj subiaceat. Cunctis, autem, eidem regno et regi sua iura seruantibus, sit pax Dominj Ihesu Christi, quatinus et hic fructum bone actionis percipiant et apud districtum iudicem premia eterne pacis inueniant. Amen. Amen. Amen.

(selo rodado) Ego Alexander, catholice ecclesie episcopus. SS. Benavelete.

(primeira coluna)

+ Ego Johannes, presbiter cardinalis Sanctorum Johannis et Pauli, tituli Pamachij, ss.
+ Ego Johannes, presbiter cardinalis, tituli Sancte Anastasie, ss.
+ Ego Johannes, presbiter cardinalis, tituli Sancte Marcj, ss.
+ Ego Petrus, presbiter cardinalis, tituli Sancte Svsanne, ss.
+ Ego Viuianus, presbiter cardinalis, tituli Sancti Stephani in Celiomonte, ss.
+ Ego Cinthyus, presbiter cardinalis, tituli Sancte Cecilie, ss.
+ Ego Hugo, presbiter cardinalis, tituli Sancti Clementis, ss.
+ Ego Ardinus, presbiter cardinalis, tituli Sancte Crucis in Jerusalem, ss.
+ Ego Matheus, presbiter cardinalis, tituli Sanctj Marcellj, ss.

(segunda coluna)

+ Ego Hvbaldus, Hostiensis episcopus, ss.
+ Ego Theodinus, Portuensis et Sancte Rufine episcopus, ss.
+ Ego Petrus, Tusculenensis episcopus, ss.
+ Ego Henricus, Albanensis episcopus, ss.
+ Ego Bernerus, Prenestinensis episcopus, ss.

(terceira coluna)

+ Ego Jacinctus, diaconus cardinalis Sancte Marje in Cosmedyn, ss.

+ Ego Ardicio, diaconus cardinalis Sancti Theodorj, ss.
+ Ego Laborans, diaconus cardinalis Sancte Marie in Porticu, ss.
+ Ego Rainerius, diaconus cardinalis Sancti Georgij ad Velum Aureum, ss.
+ Ego Gratianus, diaconus cardinalis Sanctorum Cosme et Damiani, ss.
+ Ego Johannes, diaconus cardinalis Sancti Angeli, ss.
+ Ego Rainerius, diaconus cardinalis Sanctj Adrianj, ss.
+ Ego Matheus, Sancte Marie Noue diaconus cardinalis, ss.
+ Ego Bernardus, Sanctj Nicholaj in Carcere Tulliano diaconus cardinalis, ss.

Datum Laterani, per manum Abertj, sancte romane ecclesie presbiteri cardinalis et cancellarij, x kalendas junij, judictione xi.a, jncarnationis dominice anno M. C. Lxx viiij, pontificatus uero dominj Alexandrj pape iij anno xx.
A tradução a seguir está baseada nas da Revista dos Centenários e do Portal de História, com algumas alterações.
Alexandre, bispo, servo dos servos de Deus.

Ao caríssimo filho em cristo, Afonso, ilustre rei dos portugueses, e seus herdeiros para sempre.

Está claramente demonstrado que, como bom filho e príncipe católico, prestaste inumeráveis serviços à tua mãe, a Santa Igreja, exterminando intrepidamente em porfiados trabalhos e proezas militares os inimigos do nome cristão e propagando diligentemente a fé cristã, assim deixaste aos vindouros nome digno de memória e exemplo merecedor de imitação. Deve a Sé Apostólica amar com sincero afeto e procurar atender eficazmente, em suas justas súplicas, os que a Providência divina escolheu para governo e salvação do povo.

Por isso, nós, atendendo às qualidades de prudência, justiça e idoneidade de governo que ilustram a tua pessoa, tomamo-la sob a protecção de São Pedro e nossa, e concedemos e confirmamos por autoridade apostólica ao teu excelso domínio o reino de Portugal com inteiras honras de reino e a dignidade que aos reis pertence, bem como todos os lugares que com o auxílio da graça celeste conquistaste das mãos dos sarracenos e nos quais não podem reivindicar direitos os vizinhos príncipes cristãos.

E para que mais te afervores em devoção e serviço ao príncipe dos apóstolos S. Pedro e à Santa Igreja de Roma, decidimos fazer a mesma concessão a teus herdeiros e, com a ajuda de Deus, prometemos defender-lha, quanto caiba em nosso apostólico ministério. Continua, pois, a mostrar-te filho caríssimo, tão humilde e devotado à honra e serviço da tua mãe, a Santa Igreja Romana, e a ocupar-te em defender os seus interesses a dilatar a fé cristã de tal modo que esta Sé Apostólica possa alegrar-se de tão devoto e glorioso filho e não duvide da sua afeição.

Para significar que o referido reino pertence a São Pedro, determinaste como testemunho de maior reverência pagar anualmente dois marcos de ouro a nós e aos nossos sucessores. Cuidarás. por isso, de entregar tu e os teus sucessores, ao Arcebispo de Braga pro tempore, o censo que a nós e a nossos sucessores pertence.

Determinamos, portanto, que a nenhum homem seja lícito perturbar temerariamente a tua pessoa ou as dos teus herdeiros e bem assim o referido reino, nem tirar o que a este pertence ou, tirado, retê-lo, diminuí-lo ou fazer-lhe quaisquer imposições. Se de futuro qualquer pessoa eclesiástica ou secular intentar cientemente contra o que dispomos nesta nossa Constituição, e não apresentar satisfação condigna depois de segunda ou terceira advertência, seja privada da dignidade da sua honra e poder, saiba que tem de prestar contas a Deus por ter cometido uma iniquidade, não comungue do sacratíssimo Corpo e Sangue de Jesus Cristo nosso divino Senhor e Redentor, e nem na hora da morte se lhe levante a pena. Com todos, porém, que respeitarem os direitos do mesmo reino e do seu rei, seja a paz de Nosso Senhor Jesus Cristo, para que neste mundo recolham o fruto das boas obras e junto do soberano juiz encontrem o premio da eterna paz. Amem. Amem. Amem.

(selo rodado) Eu Alexandre, bispo da Igreja Católica. Adeus.

(primeira coluna)

+ Eu João, cardeal presbítero dos Santos João e Paulo, título de Pamáquio.
+ Eu João, cardeal presbítero de Santa Anastásia.
+ Eu João, cardeal presbítero de São Marcos.
+ Eu Pedro, cardeal presbítero de Santa Susana.
+ Eu Viviano, cardeal presbítero de Santo Estêvão no Monte Celio.
+ Eu Cíntio, cardeal presbítero de Santa Cecília.
+ Eu Hugo, cardeal presbítero de São Clemente.
+ Eu Arduino, cardeal presbítero de Santa Cruz em Jerusalém.
+ Eu Mateus, cardeal presbítero de São Marcelo.

(segunda coluna)

+ Eu Ubaldo, Bispo de Óstia.
+ Eu Teodino, Bispo do Porto e de Santa Rufina.
+ Eu Pedro, Bispo de Frascati.
+ Eu Henrique, Bispo de Albano.
+ Eu Bernardo, Bispo de Palestrina.

(terceira coluna)

+ Eu Jacinto, cardeal diácono de Santa Maria em Cosmedína.
+ Eu Ardício, cardeal diácono de São Teodoro.
+ Eu Laborana, cardeal diácono de Santa Maria em Porticu.
+ Eu Rainério, cardeal diácono de São Jorge em Velabro.
+ Eu Graciano, cardeal diácono dos Santos Cosme e Damião.
+ Eu João, cardeal diácono de Santo Angelo.
+ Eu Rainério, cardeal diácono de Santo Adriano.
+ Eu Mateus, cardeal diácono de Santa Maria-a-Nova.
+ Eu Bernardo, cardeal diácono de São Nicolau em Carcere Tuliano.

Dada em Latrão, por mão de Alberto, cardeal presbítero e chanceler da Santa Igreja Romana, a 10 das calendas de Junho [23 de Maio], indicção XI, ano M.C.LXX.VIIII da Encarnação do Senhor e XX do Pontificado do Papa Alexandre III.
Antes dessa bula, em 13 de dezembro de 1143, Afonso Henriques havia prestado vassalagem â Santa Sé por meio de correspondência dirigida ao papa Inocêncio II.

Recebeu em troca um reconhecimento precário, em 1º de maio de 1144, como duque das terras de Portugal (dux portucalensis), em vez de rei (rex) do reino de Portugal, por meio da bula Devotionem tuam, do papa Lúcio II, que sucedeu a Inocêncio II e Celestino II, que faleceram um seguido ao outro.

Fontes:

ALMEIDA, Manuel Lopes de; BROCHADO, Idalino Ferreira da Costa; DINIS, Antonio Joaquim Dias. Monumenta Henricina. Volume 1. Coimbra: Comissão Executiva das Comemorações do V Centenário da Morte do Infante D. Henrique, 1960.

COMISSÃO EXECUTIVA DOS CENTENÁRIOS. Tradução da Bula Manifestis Probatum do Papa Alexandre III a D. Afonso Henriques. In Revista dos Centenários, nº 18, 30 de junho de 1940, ano II. Lisboa: Comissão Executiva dos Centenários, 1940.

MARTINEZ, Pedro Soares. História Diplomática de Portugal. 3ª edição. Lisboa: Almedina, 2010.

PEREIRA, Isaías da Rosa Pereira. Bula Manifestis Probatum, de 23 de Maio de 1179. In O Portal da História (www.arqnet.pt). Acesso em 19.fev.2017.