terça-feira, 17 de julho de 2018

Juiz Conservador: Humilhante?

Paulo Werneck

Capa do I Livro das Ordenações de Dom Manuel.

Uma questão que volta e meia aparece, usualmente abordada sob uma ótica anacrônica e preconceituosa, é a do juiz conservador, que teria sido uma humilhação imposta a Portugal pelos ingleses.

A seguir um texto recolhido aleatoriamente na Internet, que bem demonstra o conceito equivocado. Não se desmerece seu autor, pois não se pode julgar o todo pela parte, e o texto apresenta a fonte que foi consultada. Vejamos pois o texto, retirado de "Juris, a enciclopédia jurídica":
JUIZ CONSERVADOR (s. m. + adj.), «instituição da costumária inglesa caída em desuso, pela qual certas nações tinham o privilégio de designar magistrados para entender das disputas que envolvessem os súditos seus conacionais em terra estranha. (OBS) A instituição, a toda evidência humilhante, vigeu no Brasil desde 1810, por efeito do tratado de Portugal com a Inglaterra, até 1844».
As nações não tinham o privilégio de designar magistrados, mas o de serem designados magistrados para entender das disputas que envolvessem seus súditos. Exemplificando: o Juiz Conservador dos Ingleses era designado pelo Rei de Portugal e não pelo Rei da Grã-Bretanha.

O costume não foi estabelecido pelos ingleses em Portugal, mas por Dom Afonso Henriques em homenagem à ajuda que recebeu de cavaleiros estrangeiros para a luta que travou e venceu no Cerco de Lisboa, os alemães sendo dos primeiros a receber tal deferência.

Ainda a registrar que o Brasil em 1810 não era uma nação soberana mas parte do território do Reino de Portugal, onde vigiam as leis portuguesas, e portanto os ingleses, assim como franceses, alemães, italianos, etc tinham direito a juiz conservador bem antes disso. Com o estado de beligerãncia entre Portugal e a maioria dos países europeus, dominados pela França, claro que os demais juízes conservadores deixaram de existir quando da invasão francesa.

Note-se que os juízes conservadores eram juízes de piso, suas decisões passíveis de serem agravadas e levadas para instância superior, como as decisões de quaisquer outros juízes.

Finalmente, juízes conservadores, numa época em que saber ler e escrever era uma das exigências para que alguém pudesse ser nomeado juiz, parece-me coisa muito útil por possivelmente depender do julgador dominar a língua estrangeira da nação da qual seria conservador. Algo como um juiz de vara especializada. Em vez de dizermos hoje juiz de órfãos ao juiz titular da vara de órfãos, diríamos juiz conservador dos órfãos.

Para demonstrar os pontos abordados, um decreto registrado na Collecção Chronologica, mostrando a existência de juiz conservador dos franceses em 1699 e que o juiz conservador julgava em primeira instância.
Ord. Liv. I. Tit. 52.  §. 9.

Decreto, em que se mandou sentencear pelo seu Conservador um Francez, condenado à morte na Relação.

Henrique Habel, Francez de nação, que hontem, por sentença da Casa da Supplicação, foi sentenceado á morte, deve ser remettido ao Conservador da nação Franceza, para o sentencear na primeira instancia. O Conde Regedor da Justiça o tenha assi entendido, e nesta conformidade o fará executar. Lisboa 19 de Abril de 1699.

Por Rubrica de Sua Magestade.

Liv. II. da Supplicação fol. 74.
O livro no qual se encontra o decreto não explica como o caso subiu à apreciação real, mas podemos supor que Henrique teria sido condenado por um Juiz do Crime, apesar de, sendo francês, dever ter sido julgado pelo Juiz Conservador dos Franceses, que seria seu juiz natural. O processo teria subido em nível de recurso para a Casa da Supplicação, um tribunal superior, ou talvez porque a pena capital assim o exigisse, mas a defesa conseguiu mostrar ao rei que o processo foi iniciado seguindo por caminhos errados, não tendo sido o acusado julgado pelo seu juiz conservador, como seria do seu direito.

Fontes:

FREITAS, Joaquim Inácio de. Collecção Chronologica de Leis Extravagantes, Posteriores à Nova Compilação das Ordenações do Reino, Publicadas em 1603 - Tomo I. Que Compreende os Reinados de Filippe II e III, e os dos Senhores D. João IV, D. Affonso VI, D. Pedro II, e D. João V, p. 261. Coimbra: Real Imprensa da Universidade, 1819.

JURIS, A enciclopédia juridica. Disponível em http://juris.wiki.br/w/Juiz_conservador. Acessado em 16 de julho de 2018.