domingo, 29 de julho de 2018

O que fazer na falta de um Juiz Conservador?

Paulo Werneck


Roque Gameiro: Cerco de Lisboa

Na postagem "Juiz Conservador: Humilhante?" afirmou-se que os juízes conservadores, isto é, os juizes especializados em causas envolvendo estrangeiros, não eram restritos aos ingleses, mas, ao contrário, os haviam para diversas nações.

É o que podemos depreender da leitura do Assento CCXCII da Casa da Suplicação, um tribunal superior, de 23 de Março de 1786.
CCXCII. Ord. Liv. I. Tit. 49. §. 3.

As Causas dos Mercadores Alemaens, e de outros Privilegiados estantes em Lisboa, devem ser distribuidas igualmente por todos os Corregedores do Civel da mesma Cidade, em quanto Sua Magestade naõ designar Conservador, que conheça privativamente de semelhantes Causas.

Aos 23 de Março de 1786, na presença do Senhor Bartholomeu Joze Nunes Cardozo Giraldes de Andrade, do Conselho de Sua Magestade, Desembargador do Paço, e Chanceller da Casa da Suppilcaçaõ, que serve de Regedor das Justiças, veio em duvida, se estabelecendo a Ordenaçaõ do Liv. I. Tit. 49. §. 3, que hum dos Corregedores do Civel da Cidade de Lisboa conhecerá dos Feitos, e Causas dos Mercadores Alemães, e de todos os outros Privilegiados estantes na mesma Cidade; esta disposiçaõ se deve entender do Corregedor, que occupa a primeira Vara, ou daquelle que primeiro entre elles tomou posse do Lugar, ou se as ditas Causas devem ser igualmente distribuidas por todos os quatro Corregedores sem preferencia, e Jurisdiçaõ a hum privativa, com excluzaõ dos mais? Se assentou por quase huma uniformidade de votos, que sendo os Privilegios dos Alemães huns dos mais antigos que tem o Reino; pois tiverão principio com a sua fundaçaõ, conferidos pelo Senhor Dom Affonso Henriques, pelo auxilio, que estas, e outras Nações do Norte lhe prestaraõ no Cerco de Lisboa, cujos Privilegios lhe foraõ sempre guardados por todos os Senhores Reis Seus Successores, e sendo um delles ter seu Juiz Privativo nas Causas, que respeitavaõ ao seu Cõmercio, e mercancia: como pela Compilaçaõ Filippina das Ordenações feita em tempo, que se achavaõ estabelecidos dous Corregedores do Civel da Cidade, foi conferido o poder de julgar as Causas de semelhante qualidade a um delles no §. 3 do Tit. 49 Liv. I, sem se explicar, se he o da primeira, ou da segunda Vara, bem se infere, que a Jurisdiçaõ ficou conforme a Direito comulativamente a ambos, em quanto Sua Magestade o não declarava por sua Real Resoluçaõ; passando-se Carta de Juiz Conservador a um delles, como com effeito consta se passou nos antigos tempos: E sem embargo que, ou por se naõ pedir a dita Conservatoria, ou por qualquer outra razaõ, se observasse o Estilo de conhecer o Corregedor da primeira Vara das Causas de semelhantes Privilegiados, como este Estilo com tudo depois se inverteu, e o ultimo estado foi de conhecerem cumulativamente todos os quatro Corregedores, que existissem depois da nova creaçaõ feita pelo Senhor Rei D. João V. no Decreto de 19 de Dezembro de 1743, deviaõ as ditas Causas ser distribuidas por todos, para se observar huma perfeita igualdade entre elles, naõ só porque assim o recommenda a Lei geral da Distribuiçaõ, e a Extravagante de 23 de Abril de 1723, posterior á dita Ordenaçaõ, debaixo da pena de nullidade dos processos; mas porque no Alvará de 8 de Maio de 1745 se mandou distribuir as Causas por todos os Escrivães do Civel da Cidade, ainda das que pertenciaõ ás Conservatorias; e militando a respeito dos Corregedores a mesma identidade de razaõ, que tende a obviar o prejuizo da desigualdade entre os Escrivães, lhe deve ser applicavel em tudo a sua disposiçaõ, para que todos os Corregedores por uma regular distribuiçaõ hajaõ de conhecer das Causas dos ditos Privilegiados, exceptuando só os que forem Vassalos do Imperador, e habitantes das Cidades Hanseaticas; porque estes tem seu Juiz Conservador separado, em virtude dos Tractados de Paz, e alliança, na conformidade das Leis, e Alvarás, que lhos concederaõ, de que faz mençaõ o Aviso de 4 de Fevereiro de 1778, dirigido a esta Relaçaõ. Bem entendido que a sobredita distribuiçaõ se observará em quanto por eleiçaõ superior naõ for designado o Corregedor, que deve conhecer das Causas dos ditos Privilegiados, ou de outro modo Sua Magestade naõ provêr a dita Conservatoria: E para que naõ venha mais em duvida, se tomou este Assento; que assignou o dito Senhor Chanceller com os Ministros dos Aggravos, que foraõ presentes. Como Regedor, Giraldes. Gama. Ribeiro de Lemos. Caldeira. Fajardo. Matta. Gama e Freitas. Mesquita, Doutor Costa. Sarmento. Mendonça. Velho da Costa. Lima.

Liv. dos Assentos da Casa da Supplicação fol. 163.
Esse assento trata de uma dúvida que tem a ver com a questão do juiz natural e, porque não lembrar, dos proventos dos juízes.

A motivação da decisão é definir de quem é a atribuição de substituir um juiz conservador quando o cargo está vago. No caso fica claro que quem deve atuar no processo é um corregedor do cível, mas qual, se no momento em que a questão foi tratada os havia em quantidade de quatro. A decisão enumera diversos critérios, como os usos e costumes (o estilo), a antiguidade no cargo, terminando por estabelecer uma distribuição regular, qual seja, que ao fim de um certo tempo cada corregedor teria julgado a mesma quantidade de causas.

Com isso ficou definido quem é o juiz natural de cada caso, mas também foi estabelecido uma igualdade de proventos entre os corregedores, que eram remunerados pelas custas dos processos.

Voltando ao tema que nos interessa no momento, há que se destacar duas informações: a primeira é que os juízes conservadores remontam à fundação mesma de Portugal, decorrendo do apoio que Afonso Henriques recebeu de outros povos para conquistar Lisboa aos Mouros.

A outra é que essa decisão da Casa da Suplicação é genérica, e abrange os cargos vagos de juízes de privilegiados, ou seja, dos conservadores de outras nações e de conservadores outros, que os havia.

Fontes:

PORTUGAL. Collecção Chronologica dos Assentos das Casas da Supplicação e do Civel. I. Collecção Chronologica dos Assentos das Casas da Supplicação e do Civel. p. 583. Coimbra: Real Imprensa da Universidade, 1791.