domingo, 19 de agosto de 2018

Fake Olds I - Vinhas e Couros

Paulo Werneck


Vindima
Fonte: Museu do Douro

Atualmente estamos assistindo a discussões e denúncias sobre as chamadas "fake news", notícias falsas, tendentes a influenciar politicamente os eleitores ou criar climas de pânico. Muitas dessas notícias não são meramente erros de seus autores, mas são produzidas com esse fim por organizações com objetivos definidos, ou mesmo por jornais, que esquecem seu dever de informar corretamente, seja por preguiça de verificar as fontes, seja para promover a orientação política de seus donos.

Aqui, todavia, tratamos de fatos do passado, não nos interessa o que ocorre hoje - salvo a publicação de livros e a promoção de eventos sobre a história - mas não deixa de haver alguma conexão entre as "fake news" e as "fake olds", digamos assim.

O que seriam as "fake olds"? Nada menos do que notas históricas falsas, seja por preguiça do autor, seja por desejo mesmo de falsear os fatos para apoiar uma interpretação que defenda.

O caso do Alvará de 5 de janeiro de 1785, de dona Maria I, é exemplar. Apesar de facilmente localizável, muita gente insiste em que a rainha teria proibido as manufaturas no Brasil, quando proíbe apenas as de tecidos finos, permitindo que permanecessem funcionando as manufaturas de panos grosseiros.

No livro de Heitor Ferreira Lima, História do pensamento econômico no Brasil, consta na página 71 o seguinte parágrafo, tendo como fonte Pereira dos Reis, no livro "O colonialismo português e a Conjuração Mineira":
Concomitantemente a este intercâmbio comercial volumoso e desfavorável para nós, existia uma série de leis restringindo nossa expansão, particularmente no domínio industrial. A carta régia de 1.° de março de 1590 proibiu a plantação e cultura das vinhas; em 6 de fevereiro de 1649, foi criada a Companhia Geral do Comércio com o Brasil; em 1665, foi proibido produzir sal no Brasil; o alvará de 12 de maio de 1680 obrigou os sapateiros a só trabalharem com couros vindos de Portugal; em 1690, a venda do sal vindo da metrópole era arrematada por particulares; a carta régia de 1724 vedou as promoções acima de alferes aos brasileiros; o alvará de 5 de fevereiro de 1767 impediu a fabricação de sabão; a proclamação do governo de Minas Gerais de 4 de julho de 1775 determinou a extinção das fábricas de tecidos; o alvará de 5 de janeiro de 1785 mandou fechar todas as fábricas de tecidos, e as oficinas de ouro e prata, etc. funcionando no país; em 1785, era impedida também a fabricação de ferro entre nós; a profissão de ourives foi proibida, não se permitindo igualmente a abertura de estradas para Minas Gerais. Não tínhamos universidade, sendo todo o ensino superior ministrado na metrópole, faltando também tipografias para impressão de livros, controlando-se com rigor extremo essa mercadoria importada.
Ora, disponho de uma excelente biblioteca para um oitocentista, com mais de 300 livros de legislação, todos em pdf, garimpados em sites como a Biblioteca Nacional, Biblioteca Nacional de Portugal, Biblioteca Digital da USP, Internet Archive e outros sites. É verdade que muitos exemplares são repetidos, o que reduz um pouco a quantidade de obras diferentes.

Como historiador arquivista, que não sai da poltrona, e sem formação acadêmica na disciplina, me restrinjo a pesquisar documentos transcritos nessas obras para lhes conhecer o inteiro teor e tentar apreender-lhes o sentido.

Tendo então chegado ao parágrafo citado, pus-me a compulsar meus "livros" a procurar os documentos citados: tarefa inglória e sem resultado.

Em desespero de causa, pedi ajuda àquele que tudo sabe, o titio Google, e me deparei com um artigo do Luiz Tenório de Brito, que perora contra quem ele denomina "divulgadores de documentos mutilados, fraudados, deformados assim trazidos a público com objetivos confusionistas".

Em seu artigo, Brito aborda diversas proibições "fake", muitas das quais presentes no citado parágrafo do livro de Ferreira Lima, como a proibição da plantação de vinhas. Diz Brito:
"CARTA RÉGIA DE 1.º DE MARÇO DE 1590, proibindo a cultura de vinha".

Ora, Portugal estêve sob o domínio da Espanha de 1580 a 1640, verificando-se, logo no comêço, a "elegância" do historiador. A ordem foi assinada pelo rei da Espanha, a qual entretanto deixou de ser obedecida, pois, segundo mestre Afonso de Taunay (São Paulo nos primeiros tempos - página 140), em fins do século XVI fertilíssimos pomares circundavam a vila de Piratininga, onde uvas, figos, romãs, maçãs, marmelos vinham abundantíssimos. Já em São Paulo havia moradores que faziam duas pipas de vinho por ano.
Quanto à obrigação dos sapateiros, continua Brito:
"ALVARÁ DE 12 DE MAIO DE 1680, obrigando os sapateiros a só trabalharem em couros que viessem de Portugal".

Leiamos o documento: Ordenou-se às Câmaras Municipais que fizessem posturas (isso era atribuição da Câmara Municipal) que proibissem o uso e o gasto de outra sola que não fôsse fabricada dentro do mesmo Reino e suas conquistas - isto é, em Portugal, Índia, Brasil, etc. Note-se a "elegância" do historiador nas suas pesquisas...
Ficamos por aqui.

Continuo buscando os documentos originais, pois também Brito não os transcreveu em seu artigo.

Fontes:

BRITO, Luiz Tenório de. Prometi. Aqui Estou. In Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, Volume LIX, paginas 59 a 70.

LIMA, Heitor Ferreira (1905-1989). História do pensamento econômico no Brasil, página 71. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976.