sexta-feira, 31 de agosto de 2018

Fake Olds IV - Discriminação

Paulo Werneck


Domenico Failutti: Maria Quitéria, alferes
Fonte: Wikipedia

Mais um comentário. Lima registra que "a carta régia de 1724 vedou as promoções acima de alferes aos brasileiros".

Apesar de ainda não ter sido identificado o livro citado por Brito, há um artigo de Marcondes de Souza, "A monomania invade o campo sereno da História", em que está escrito:
Ordem Régia de 19 de fevereiro de 1724, determinando que as promoções de alferes para cima fôssem feitas por el-Rei, não podendo aproveitar as mesmas aos filhos do Brasil.
Uma consulta ao buscador do "O Governo dos Outros", com o ano de 1724 e a palavra alferes resulta em nenhum resultado.

É difícil provar que essa Ordem Régia nunca existiu, mas os indícios levam a deduzir tratar-se de uma ficção, ou talvez de uma interpretação apressada, por exemplo se a dita cuja houver sido escrita visando uma dada pessoa que tenha merecido a real atenção de limitar-lhe os horizontes...

Vejamos o que diz Brito a respeito do assunto:
"AVISO RÉGIO DE 27 DE JANEIRO DE 1726, ESTABELECENDO INIQUAS RESTRIÇÕES AOS MESTIÇOS, QUE NÃO PODIAM OCUPAR CARGOS PÚBLICOS OU CASAR COM BRANCOS" - O rei jamais proibiu casamentos entre mestiços no Estado do Brasil. Leia-se êste alvará de 4 de abril de 1775 declarando: "no interêsse do povoamento (e não colonização) dos domínios portuguêses na América que os seus vasalos de Portugal e da América, que casarem com índias delas não ficam com infâmia alguma, antes se farão dignos da real atenção e que nas terras onde se estabelecerem serão preferidos para aqueles lugares e ocupações que couberem na graduaçáo das pessoas e que seus filhos e descendentes serão hábeis e capazes de qualquer emprego, honra e dignidade. Proibe que os ditos vassalos casados com índias ou seus descendentes sejam tratados com o nome de caboclos ou de outro semelhante que possa ser injurioso". (J. P. Xavier de Miranda, Efemérides Mineiras, Vol. 1, p.p. 16-17). Até mulheres podiam ser nomeadas para cargos públicos, conforme documento registrado no livro 3.º de registros da Secretaria do Estado do Brasil, na Bahia, a 19 de maio de 1692 (Documentos Históricos - Biblioteca Nacional - Vol. 30, pg. 286).
Continua Brito, apresentando argumentos baseados em casos concretos e indiscutíveis:
Matias de Albuquerque, nascido em Olinda, foi governador do Estado do Brasil, comandou as tropas luso-brasileiras contra a invasão holandesa, tendo recebido o título de Conde de Alegrete. Seu antepassado, o mameluco Jerônimo de AIbuquerque Maranhão, organizou e comandou as tropas que expulsaram em 1614 os franceses do Maranhão. Outro mameluco, André Vidal de Negreiros, nascido na Paraíba, herói das lutas pela expulsão dos holandeses de Pernambuco, foi governador do reino de Angola e de várias capitanias no Estado do Brasil.

José Bonifácio, santista, foi pensionista da Coroa Portuguêsa para estudar siderurgia em Universidades européias: lente da Universidade de Coimbra e longa seria a lista de nascidos na Estado do Brasil em posição de destaque como funcionários da Coroa Portuguêsa, se houvesse espaço para tanto.
O alvará citado por Brito está publicado na Collecção da Legislação Portugueza de António Delgado da Silva:
EU ELREI Faço saber aos que este Meu Alvará de Lei virem, que considerando o quanto convém, que 0s Mens Reaes dominios da America se povoem, e que para este fim póde concorrer muito a communicução com os Indios, por meio de casamentos: Sou Servido declarar, que os Meus Vassallos deste Reino, e da America, que casarem c0m as Indias della, nã0 ficão com infamia alguma, antes se farão dignos da Minha Real attenção, e que nas terras, em que se estabelecerem, serão preferidos para aquelles lugares, e occupações, que couberem na graduação das suas pessoas, e que seus filhos, e descendentes serão habeis, e capazes de qualquer emprego, honra, ou Dignidade, sem que necessitem de dispensa alguma, em razão destas alianças, em que serão tambem comprehendidas as que já se acharem feitas antes desta Minha declaração: E outro sim prohibo, que os ditos Meus Vassallos casados com as Indias, ou seus descendentes, sejão tratados com o nome de Caboucolos, ou 0utro semelhante, que possa ser injurioso; e as pessoas de qualquer condição, ou qualidade, que praticarem o contrario, sendo-lhes assim legitimamente provado perante os Ouvidores das Comarcas, em que assistirem, serão por sentença destes, sem appellação, nem aggravo, mandados sahir da dita Comarca dentro de hum mez, até mercê Minha; o que se executará sem falta alguma, tendo porém os Ouvidores cuidado em examinar a qualidade das provas, e das pessoas, que jurarem nesta materia, para que se não faça violencia, ou injustiça com este pretexto, tendo entendido, que só hão de admittir queixa de injuriado, e não de outra pessoa: O mesmo se praticará a respeito das Portuguezas, que casarem com Indios: e a seus filhos, e descendentes, e a todos concedo a mesma preferencia para os Officios, que houver nas terras, em que viverem; e quando succeda, que os filhos, ou descendentes destes matrimonios tenhão algum requerimento perante mim, Me farão a saber esta qualidade, para em razão della mais particularmente os attender. E ordeno que esta Minha Real resolução se observe geralmente em todos os Meus dominios da America. Pelo que: Mando ao Vice-Rei, e Capitão General de mar, e terra do Estado do Brazil, Capitães Generaes, e Governadores do Estado do Maranhão, e mais Conquistas do Brazil, Capitães Móres dellas, Chancelleres, e Desembargadores das Relações da Bahia, e Rio de Janeiro, Ouvidores geraes das Comarcas, Juizes de Fóra, e Ordinarios, e mais Justiças dos referidos Estados, cumprão, e guardem o presente Alvará de Lei, e o fação cumprir, e guardar na fórma que nelle se contém, 0 qual valerá como Carta posto que seu effeito haja de durar mais de hum anno, e se publicará nas ditas Comarcas, e em Minha Chancellaria Mór da Corte, e Reino, onde se registará, como tambem nas mais partes, em que semelhames Alvarás se costumão registar; e o proprio se lançará na Torre do T ombo. Lisboa 4 de Abril de 1755. = Com a Assignatura de ElRei, e a do Marquez de Penalva Presidente.

Regist. na Chancellaria Mór da Corte, e Reino no Livro das Leis, a fol. 83, e impr. avulso.
O documento registrado a 19 de maio de 1692, também citado por Brito, está efetivamente publicado em Documentos Históricos e segue transcrito:
Registo do Alvará por que Sua Magestade faz mercê a D. Antonia de Faria do officio de Escrivão dos Contos desta cidade da Bahia que vagou por fallecimento de Balthazar Fernandes Gago de quem não ficaram filhos para a pessoa que com ella casar sendo capaz delle, e que não sendo se proverá na pessoa digo a propriedade na pessoa que o for.

Eu El-Rei. Faço saber aos que este meu Alvará virem que tendo respeito a haver feito mercê a D. Antonio de Faria por Portaria de 24 de Novembro de 690 em satisfação dos serviços de seu Pae Capitão Antonio de Faria Monteiro obrados desde 11 de Março de 641 até 23 de Setembro de 683. de 25$000 effectivos, em um dos Almoxarifados do Reino em que coubesse sem prejuízo de terceiro, e não fosse prohibido dos quaes lograria 12 (sic) a pessoa com que casasse a titulo de habito de Assis, ou S. Thiago, qual escolhesse que lhe mandaria lançar, da qual mercê fez a D. Antonia de Faria deixação, e a lhe pertencer por sentença do Juizo das Justificações a acção dos serviços de seu Irmão Antonio Monteiro de Faria por lhos haver renunciado por uma escriptura seu Irmão Thomé Monteiro de Faria a quem estavam julgados os mesmos serviços continuados na cidade da Bahia por espaço de 17 annos 1 mez e 14 dias effectivos desde 16 de Setembro de 660 até 30 de Outubro de 683 havendo-se com bom procedimento, e zelo do meu serviço e principalmente na oceasião em que houve aviso passava a Bahia.... Armada Hollandeza trabalhando por espaço de 8 mezes na reedificação das trincheiras roçando o matto, e carregando toras, e ultimamente não faltar a sua obrigação quanto tocou a sua obrigação digo a sua companhia no encher de terra a camisa de uma Casa Forte, e Armazem que edificou o Mestre de Campo General Roque da Costa Barreto Governador do Estado do Brasil em satisfação dos referidos serviços, e deixação que fez da mercê com que estava deferida pelos do dito seu pae, Hei por bem fazer mercê á dita D. Antonia de Faria do officio de Escrivão dos Contos desta cidade da Bahia, que vagou por fallecimento de Balthazar Fernandes Gago de quem não ficaram filhos para a pessoa que com ella casar, sendo capaz delle, e não o sendo se proverá a propriedade na pessoa que o for, de que na Portaria que se lhe havia passado, e em seu registo se porão verbas. Pelo que mando ao Presidente e Conselheiros do meu Conselho Ultramarino que a pessoa que com este lhe apresentar sentença de justificação por que conste estar casado em face da Igreja com a dita D. Antonia de Faria, e sendo capaz, lhe façam passar carta da propriedade do dito offico na qual se trasladará este Alvará que cumprirá inteiramente como nelle se contém sem duvida alguma e valerá como Carta sem embargo da Ordenação do livro l titulo 40 em contrario, e se passou por 2 vias, e pago#S novo direito 30 reis que se carregaram ao Thesoureiro. João Ribeiro Cabral a fls. &*¦ verso como constou de um conhecimento em forma registado no Registo Geral a fls. 120. Manuel Pinheiro da Fonseca a fez em Lisboa a 4 de Marco de 692. O Secretario André Lopes de Lavra a fiz escrever. Rei. Alvará por que Vossa Magestade faz mercê a D. Antonia de Faria do oificio de Escrivão dos Contos da cidade da Bahia que vagou por fallecimento de Balthazar Fragoso digo Fernandes Gago de quem não ficaram filhos, para a pessoa que com ella casasse sendo capaz delle, e que não o sendo se proverá a propriedade na pessoa que o for como nelle se declara que vae por duas vias. Para Vossa Magestade ver. Primeira via. Por resolução de Sua Magestade de 11 de Julho de 691, e 29 de Fevereiro de 692, em consulta do Conselho Ultramarino de 31 de Maio de 691, e 26 de Fevereiro de 1692, pagou 300 reis. João de Rochas e Azevedo. Antônio Paes de Sande. Tristão Guedes de Queiroz. Pagou 30 reis, e aos officiaes 210 reis. Lisboa 18 de Março de 1692. D. Francisco Maldonado. Registado na Chancellaria-mor da Côrte e Reino no livro de officios e mercês a fls. 29. Lisboa 18 de Março de 1692. Innocencio Corrêa de Moura. Fica assentado este Alvará nos livros das mercês, e pagou 100 reis. Amaro Nogueira de Andrade. Registado nos livros de officios da Secretaria do Conselho Ultramarino a fl.s 180 em Lisboa 21 de Março de 1692. André Lopes de Lavra. Cumpra-se como El-Rei meu Senhor manda, e registe-se nos livros da Secretaria do Estado, e nos mais a que tocar. Bahia 19 de Maio de 1692. Antônio Luiz Gonçalves da Camara Coutinho. Registado no livro 3° dos registos da Secretaria do Estado do Brasil a que toca a fls. 195. Bahia 19 de Maio de 1692. Bernardo Vieira Ravasco. Registe-se. Bahia 23 de Maio de 1692. Francisco Lamberto. Registou-se em 28 do dito mez e anno acima.

Francisco Dias do Amaral
Não causa surpresa o alvará iníquo não ter sido localizado, nem na Internet, nem nos inúmeros livros antigos de legislação disponíveis virtualmente em nossa biblioteca. Mas, evidentemente, não podemos afirmar com certeza não ter existido.

Fontes:

BRASIL, Bibliotheca Nacional. Documentos Históricos. Volume 30:- 1690 - 1693, Provisões, Patentes, Alvarás, páginas 286 a 288. Rio de Janeiro: Typographia Arch. de Hist. Brasileira, 1985.

BRITO, Luiz Tenório de. Prometi. Aqui Estou. In Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, Volume LIX, paginas 59 a 70.

LIMA, Heitor Ferreira (1905-1989). História do pensamento econômico no Brasil, página 71. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976.

MARCONDES DE SOUZA, Thomaz Oscar. A Monomania Invade o Campo Sereno da História, in Revista de História da USP, volume 16, número 33, páginas 95 a 102, disponível em "https://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/106627".

SILVA, António Delgado da. Collecção da Legislação Portugueza desde a última Compilação das Ordenações. Legislação de 1750 a 1762. Páginas 367 e 368. Lisboa: Typografia Maigrense, 1830.