quinta-feira, 16 de maio de 2013

Tributação dos alimentos

Paulo Werneck
Afonso III, Rei de Portugal
Fonte:Wikipedia

Transcreve-se aqui uma norma atribuída a Afonso III, sobre a tributação de certos alimentos, conforme a ementa, mas que na verdade também regula outras coisas, como a proteção aos mosteiros. Consta do texto ter sido feita na era de 1310, entenda-se, na era de Cesar, que se iniciou em 38 a.C.

Em Portugal a Era Cristã foi adotada em 22 de agosto de 1422 (1460 na Era de Cesar), por uma lei do rei D. João I. Assim a norma em tela é de 24 de janeiro de 1272, compreendida pois no período do reinado de Dom Afonso III, que transcorreu de 1248 a 1279.

A linguagem é de difícil compreensão, não só pela grafia, mas também por conter muitas palavras em desuso.
Como el Rej tausou as uiandas E as outras cousas que cada huum comprase pera comer

Era de mjl E iijc x. anos. xxiiij. dias de Janeiro. Noso senhor el Rej de portuguall E Conde de bollonha. fez com conselho de seus rricos homeens E de seus fidalgos tal encouto. E Primeiramente. quem quer que for a casa de filhos d'algo que lhes faca mal peite a el Rej .iiijc . marauidis. E saara o mal que fezer aaquel que for aa casa E este encouto peite aaquel que for senhor do feito. E se nom ouuer per que peiten-no aquelles que com el forem . ¶ Quem cortar uinha ou derribar casa peite .iijc. marauidis a el Rej. E saara o mal E dano que fezer a seu dono . ¶ Aquel que em asũada . filhar boy ou uaca peite por cada huum a el Rej .bj. marauidis E aaquell cuio for .iiij. marauidis por cada huum. ¶ Quem quer que filhar carneiro peite a el Rej .ij. marauidis E aaquel cuio for meo marauidil ¶ Jtem quem quer que filhar porco . peite a el Rej iij marauidis ¶ Jtem quem quer que filhar gallinha ou capam ou cabrito ou ansaro ou leitam peite a el Rej . por cada huum senhos marauidis E aaquel cuio for .b. ssoldos ¶ Jtem quem quer que andar caminho E ueher a alguum logar hu lhe nom quiserem dar mantijmento . chame dous homeens boons que lhe apreçem aquello que quiser comprar. E pague-o por ele E filhe-o. ¶ E se os homeens boons dese logar lho nom quiserem apreçar . elle o apreçe asi como uir que he bem E pague-o E filhe-o ¶ Jtem quem filhar Capa ou ceromem ou algũa uestidura ou cuberta peite-a em dobro ataa ix dias E se o nom peitar fique em consentimento do meu meirinho E peite a mym por cada huum dous marauidis . ¶ Jtem todo laurador que nom for lançeiro este em paz . E nẽhuum nom-no mate nem lhe faça mal por omezio de seu senhor E se o alguem matar ou lhe fezer mal peite a el Rej iijc marauidis E saar-lhe-a o mal que lhe fezer ¶ Jtem se alguum matar seu Jmijgo. nom filhe a el Rem do seu dereito. depois que o matar E aquel que lhe algũa cousa filhar peite a el Rej iijc marauidis E de aquelo que filhou a seus herdeiros do morto ¶ todos os moesteiros seiam defesos E emparados per el Rej asi como forom per seu auoo . E per seu padre .
A atualização do texto foi feita por partes. Primeiramente a substituição dos letras "u" por "v", "j" e "y" por "i", conforme o contexto, bem como a conversão dos números romanos para arábicos.

A numeração romana, nessa época, era algo diferente da atual, permitindo quatro repetições, como "iiii" em vez de "iv"; o uso de outras letras, como "b" valendo "v", "R" valendo "XL"; bem como a multiplicação, o anterior multiplicado pelo seguinte, por exemplo, "iijc" valendo "iii" vezes "c", ou seja, "ccc".

A seguir a atualização da grafia das palavras com base no Vocabulário Histórico-Cronológico do Português Medieval, da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Foi feita então a substituição de algumas palavras por seus sinônimos, usando três dicionários: o Vocabulario Portuguez & Latino (1728), de Raphael Bluteau; o Diccionario da lingua portugueza (1789), Antonio de Moraes Silva; e o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Os dois primeiros estão disponíveis na Brasiliana Digital da USP.

Finalmente atualizou-se a pontuação.

Cumpre destacar algumas das palavras do texto e suas substituições:
Ansaro - não consta de nenhuma das quatro referências, mas o Dicionário Houaiss apresenta anseriforme como uma ordem de aves aquáticas, como patos e marrecos.
Assuada - ajuntamento de gente para fazer mal ou dano a alguma pessoa. No texto usa-se bando.
Ceromem - não consta de nenhuma das quatro referências, mas pelo sentido é alguma vestimenta. Foi excluído do texto.
Encouto - pena pecuniária posta a quem desobedece à lei. No texto usa-se multa ou penalidade.
Filhar - possui muitos sentidos, desde adotar até tomar pela força (furtar ou roubar) ou receber por bem. No texto usa-se roubar para tomar pela força, e tomar, quando é por bem.
Homem bom - no dicionário do Moraes Silva consta homem de bem, fidalgo, nobre. As diversas ordenações utilizam essa expressão, mas não há uma definição que possa precisar exatamente a que categoria de pessoa ela se refere no século XIII, de modo que foi mantida no texto.
Homizio - homicídio, inimizade. No texto usa-se inimizade.
Maravedi - o mesmo que morabitino, moeda de ouro cunhada na península ibérica. Manteve-se o termo.
Peitar - satisfazer uma obrigação pecuniária; pagar; remir; solver; multar, tributar. Peita significa tributo mas também suborno. No texto usa-se pagar.
Rem - significa coisa, algo, se a expressão foi afirmativa, e coisa alguma, nada, se houver algum advérbio de negação.
Sanar (de saar) - reparar, desfazer. No texto usa-se reparar.
Senhos - cada um com o seu, em cada um de seus. Exemplo: "tratara-os bem, oferecendo-lhes senhos cortes de seda".
Soldo - moeda antiga portuguesa, equivalente a um real branco ou a um vigésimo da libra. Manteve-se o termo.
Vestidura - vestido.
Vianda - coisa de comer, em especial carne de algum animal. Manteve-se o termo

Eis o texto atualizado:
Como o Rei taxou as viandas e as outras coisas que cada um comprasse para comer Era de mil e 3 x anos. 24 dias de janeiro.
Nosso senhor o Rei de Portugal e Conde de Bolonha estabeleceu com conselho de seus ricos homens e de seus fidalgos estas penalidades.
Primeiramente, quem quer que for à casa de fidalgos e lhes faça mal, pague ao Rei 400 maravedis e repare o mal que fizer àquele de quem for a casa. Esta multa pague aquele que for responsável pelo feito. Se não houver com que paguem-no aqueles que com ele forem.
Quem cortar vinha ou derrubar casa pague 300 maravedis ao rei e repare o mal e dano que fizer a seu dono.
Aquele que em bando roubar boi ou vaca pague por cada um ao rei seis maravedis e àquele de quem for quatro maravedis por cada um.
Quem quer que roubar carneiro pague ao rei dois maravedis e àquele de quem for meio maravedi.
Item quem quer que roubar porco, pague ao rei três maravedis.
Item quem quer que roubar galinha ou capão ou cabrito ou pato ou marreco ou leitão pague ao rei por cada um senhos maravedis e àquele de quem for cinco soldos.
Item quem quer que andar pelos caminhos e vier a algum lugar onde lhe não quiserem dar mantimentos, chame dois homens bons que lhe aprecem aquilo que quiser comprar, pague por ele e tome-o. Se os homens bons desse lugar lho não quiserem apreçar, ele o aprece assim como entender que é correto, pague-o e tome-o.
Item quem roubar capa ou algum vestido ou coberta pague-a em dobro até nove dias. Se não pagar fique em consentimento do meu meirinho. E pague a mim por cada um dois maravedis.
Item todo lavrador que não for lanceiro esteja em paz. E ninguém o mate nem lhe faça mal por inimizade ao seu senhor. Se alguém o matar ou lhe fizer mal pague ao rei três maravedis e repare o mal que lhe fizer.
Item se alguém matar seu inimigo, não roube dele nenhuma coisa do seu direito, depois que o matar. Aquele que lhe alguma cousa roubar, pague ao rei três maravedis e dê aquilo que roubou aos herdeiros do morto.
Todos os mosteiros sejam defendidos e amparados pelo rei assim como foram por seu avô e por seu pai.
Mesmo com a pesquisa, alguns trechos ficaram truncados.

Senhos, que já foi visto o significado, parece redundante no texto "por cada um senhos maravedis", faltando, por outro lado, o quantum a ser pago ao rei.

Ficar em consentimento do meirinho talvez signifique ficar à discrição do meirinho, que decidirá o que fazer.

Finalmente, a palavra "tausou", não encontrada em local algum, parece significar "taxou", compatível com a ementa, a qual todavia não está conforme o texto legal, que mistura penalidades por roubo à aplicação de tributos a operações de compra e venda.

Fonte:
PORTUGAL. Ordenações del-Rei Dom Duarte. Pags. 71 a 72. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1988.