domingo, 25 de março de 2012

Mercadorias Portuguesas Apresadas pelos Britânicos - II

Paulo Werneck

Na postagem anterior, referente ao número um do Correio Braziliense, vimos que o Conselho Privado, ou melhor, o Muito Honorável Conselho Privado de Sua Majestade (em Inglês Her Majesty's Most Honourable Privy Council) tomou três decisões referentes às propriedades portuguesas apresadas:
  • em 25 de novembro de 1807, determinou a restituição de todos os navios e mercadorias portugueses detidos, que não tivessem outro motivo para estarem confiscados;
  • em 6 de janeiro de 1808, determinou a restituição imediata das propriedades portuguezas reclamadas por pessoas residentes em locais que não estejam em conflito com a Grã-Bretanha; mas se os proprietários residissem em Portugal, sob invasão da França, que a mercadoria ficasse custodiada por uma junta de agentes, parte nomeados pelo rei inglês e parte pelo ministro (embaixador) português; finalmente, se a mercadoria fosse de propriedade de pessoas nas duas situações, seria considerada como pertencente a quem a reclamar;
  • em 4 de maio de 1808, determinou a restituição imediata de todos os bens ainda não restituidos, deixando ao cônsul ou ministro português a responsabilidade pelo destino daquelas que total ou parcialmente pertencessem a pessoas residentes em Portugal.

No número dois do Correio, de julho de 1808, como ocorrerá até dezembro, o editor voltou ao tema das propriedades portuguesas retidas.
As propriedades Portuguezas, detidas em Inglaterra, continuam ainda debaixo de certas restricçoens, e por conseqüência deveria eu referir por miúdo, como me propuz, o procedimento, que a este respeito tem havido, e appresentar ao publico as minhas reflexoens sobre ésta materia; mas a actual situaçaõ politica de Portugal promette tal vantagem, e me parece, que deve têr tanta influencia neste negocio; que julguei necessário differir mais para o diante, o que sobre isto tenho para dizer; por agora limitar-me-hei a expor o estado actual desta propriedade detida.

A Ordem em Conselho de 6 de Janeiro (v. pag. 16) que dispoz a respeito desta propriedade, a distinguio em tres classes: 1. Propriedade Portugueza detida em Inglaterra, cujos donos existiaô em paizes naõ sugeitos á influencia da França. 2. Propriedade pertencente a Portuguezes residentes em Portugal, e outros paizes debaixo da influencia da França. 3. Propriedade mixta pertencente a uns e outros das duas primeiras classes conjunctamente.

Mandou pois ésta ordem a respeito da propriedade da 1 classe, que se entregasse a quem quer que a reclamasse para a reentregar a seus donos, e permittio, que, no caso de naõ haver quem a reclamasse, o Cônsul, ou outra pessoa, authorizada pelo Ministro de Portugal residente nesta Corte, a reclamasse, e lhe fosse entregue. Por tanto a respeito desta propriedade fica claro, que se os donos estaõ no desembolço della desde 6 de Janeiro até o presente dia, naõ he culpa do Governo Inglez; porque qualquer pessoa podia reclamar ésta propriedade, e entregalla aos donos, e nisso se ha obstaculo, as palavras da ordem naõ o suppôem se naõ no Ministro Portuguez; que he o único que podîa dar ou negar o consentimento para se reclamar ésta propriedade, e para ella se entregar a seus donos.

A propriedade da segunda e terceira classe, devîa ser depositada nas maõs de agentes nomeados pelo Governo Inglez, e pelos reclamantes. Em conseqüência nomeou o Governo Inglez dous Commissarios, que fôram os Senhores Guilherme Burn, e Antonio Gibbs; e o Ministro deo a sua approvaçaõ a esta medida, nomeando de sua parte outros dous Commissarios, que fôram os Senhores Joaõ Carlos Lucena, e Caetano Dias Sanctos. E naõ obstante dizer a ordem, que os commissarios, que deviam obrar com os nomeados pelo Governo Inglez, fossem escolhidos "por parte do Ministro Portuguez residente nesta corte, ou de qualquer reclamante," naõ me consta, que reclamante nenhum particular nomeasse commissarios seus; porque em todos os casos officiáram sempre os Commissarios nomeados pelo Ministro.

Naõ poderei com tudo affirmar se isto proveio da ignorância nos reclamantes particulares, desta cláusula da ordem, se de naõ lhes ser permittido, ou se de se darem por satisfeitos dos outros Commissarios nomeados pelo seu Ministro; neste caso
volenti et consentienti nula fit injuria.

Com effeito pareceo incomprehensivel a muitas pessoas, como podia o Ministro Portuguez, em Londres approvar, e convir, em que o Governo Inglez assim dispuzesse de propriedade de pessoas, vassallos de seu Soberano, sem que tal propriedade fosse nunca legitimamente condemnada por tribunal algum; e nas mesmas Gazetas Inglezas de Londres apparecêram sevéras reflexoens a este respeito, que se for necessário se produziraõ a seu tempo; pois em fim aquelles proprietários, cujas fazendas aqui se detînham com a approvaçaõ do Ministro Portuguez, pelo motivo de residîrem em Portugal, la residîam por obedecer as ordens de seu soberano; mas deixando este ponto para outra occasiaõ, agora bastará dizer, que o Governo Inglez por uma Ordem em Conselho de 4 de Mayo dimittio inteiramente de si a guarda, administraçaõ, e jus que se tinha reservado sobre a propriedade das ultimas classes, que era sujeita a deposito, e mandou, que toda ella fosse entregue ao Ministro de Portugal residente em Londres, para que o seu Soberamo dispuzesse della como lhe parecesse. Desta ordem se inferîa naturalmente, que aquella existente commissaõ de agentes Inglezes, e Portuguezes deixava ipso facto de existir; mas, para minha admiraçaõ, continua a exercitar as suas funcçoens até o momento em que isto escrevo.

Com tudo aos 20 de Junho convocou o Ministro Portuguez a sua casa todas pessoas, que tinham parte, ou interesse nestas propriedades detidas; e disséram algumas gazetas desta Cidade, que o dicto Ministro, em uma falla, que lhes fez, tractou de justificar-se para com elles de naõ ser o culpado de que as propriedades Portuguezas estivessem assim detidas e se deteriorassem, com gastos e despesas, que, em algums casos, absorbem o total das mesmas propriedades; e para sua justificaçaõ mostrára copias da correspondência particular, que tivera com o Secretario de Estado Inglez, a este respeito; e por fim concluio nomeando uma juncta de pessoas, dos negociantes presentes; para serem os que houvessem de lhe apresentar um plano sobre o melhor modo de dispor, a beneficio dos donos, a respeito das mesmas propriedades. Eu naõ sei que gráo de credito merecem estas asserçoens; porque outras gazetas disseram que tinham authoridade (sem dizer de quem) para publicar, quo o dicto nas gazetas de 25 de Junho, sobre o que se passou em caza do Ministro Portuguez, na quella occasiaõ, "naõ havia tido a subsequente approvaçaõ do mesmo Ministro" Com tudo naõ se negávam os factos, que dizem haver acontecido perante naõ menos de cincoenta pessoas. Como quer que seja, parece indubitavel, que os negociantes nomeados fôram cinco; a saber; os Sñrs. Henrique Burmester, Joaõ Coltsmann, M. A. de Paiva, --- Collin, e José Lyne. Bem longe de notar, como outros fazem, que este committê seja mais obnoxio aos Portuguezes, do que a Commissaõ acima referida, pois neste entra só um Portuguez, com quatro Inglezes, quando na outra estraram dous Portuguezes e dous Inglezes; digo, que se as pessoas nomeadas saõ capazes de aconselhar com imparcialidade, e sem attençaõ a seus interesses particulares; a nomeaçaõ delles, como conselheiros, merece a minha decidida approvaçaõ. O resultado porém do plano, que estes negociantes tem feito, e que ainda naõ está publico, mostrará até que ponto a minha bypotese he verdadeira, e se terei ou naõ de continuar a expor esta materia, para a informaçaõ dos meus patrícios, interessados nestes procedimenros.
Assim, apesar de a 4 de maio terem passado todos os bens ou diretamente para seus proprietários, ou para o controle do embaixador português, vemos que mais de um mês depois o referido embaixador ainda estava se organizando para cuidar do assunto, convocando os interessados para formarem uma comissão...

Hoje é voz corrente que quando não se quer resolver algo, deve-se nomear uma comissão. Deve ser assim, pois, como veremos, o assunto continuará meses a fio, com as mercadorias retidas e os comerciantes delas proprietários perdendo dinheiro.

Na minha singela opinião, muito a posteriori, o que Portugal deveria ter requerido de plano é autorização para mandar a mercadoria para o Brasil, que ao que me parece era o destino inicial, garantindo à Inglaterra que não iriam para território sob influência francesa, a preocupação expressa das decisões, também confusas, do Muito Honorável Conselho Privado de Sua Majestade...

A continuar em Mercadorias Portuguesas Apresadas pelos Britânicos - III.

Fonte:
Correio Braziliense, nº 2, julho de 1808. Disponível em Brasiliana USP (www.brasiliana.usp.br)