quinta-feira, 26 de junho de 2008

Foral da Alfândega, cap. I

Paulo Werneck

Geogr. Anst. vin Wagner & Debes: Mapa de Lisboa
Fonte: http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=251449

CAPITULO I.
Em que ſe defende ſob graves penas deſcarregarem-ſe mercadorias nos lugares da barra deſta Cidade ſem ordem da Alfandega.
PRimeiramente ordeno, e mando que todas as náos, urcas, e navios, e aſſim toda a outra ſorte de embarcações, de qualquer qualidade que forem, aſſim de meus naturaes, como dos Reinos eſtrangeiros, que de mar em fóra vierem demandar a barra, e porto deſta Cidade, ou venhaõ fretados para ella, ou em caſo fortuito a demandarem, ou venhaõ buſcar a franquia do dito porto, para nella venderem ſuas mercadorias: quando pelas ditas razões, ou por quaeſquer outras, de qualquer qualidade que forem ſurgirem davante de algum dos lugares deſta dita barra, convem a ſaber: Sezimbra, Caſcaes, Oeiras, Paço darcos, a Torre velha, e entre as torres de Saõ Giaõ. e Belem, em quaeſquer deſtes lugares, ou em qualquer outro lugar, e paſſo deſta barra, povoado, ou deſpovoado, aſſim da parte de Caparica, como da parte de Oeiras, naõ poderáõ nos ditos lugares, e partes deſcarregar mercadorias algumas, nem mantimentos nos bateis das ditas embarcações, nem em outros alguns da terra, ſob pena de ſe perderem as ditas mercadorias, e mantimentos, e aſſim os bateis em que ſe deſcarregarem, e o ſenhorio, ou Meſtre de tal náo, urca, ou navio, donde ſe deſcarregarem, pagará a duzentos cruzados de pena de cadea, e haverá a mais pena que no caſo couber, ſegundo a qualidade da culpa. E iſto ſe cumprirá, ſem embargo de allegarem os ditos Meſtres, que as ditas mercadorias: e mantimentos vem fretados para algum dos ditos lugares, e a entregar a peſſoas nelles moradores, por quanto ſe naõ podem fazer os taes fretamentos para lugares onde naõ ha minhas Alfandegas, para ſe nellas poderem deſcarregar as ditas mercadorias, e mantimentos, por ordem de meus Officiaes, e dellas ſe pagarem os direitos, que ſe devem á minha fazenda.

Comecemos pelo título: o verbo defender está utilizado num sentido pouco usual: proibir. No entanto é frequente o uso do termo "defeso", para indicar o período em que a caça ou a pesca é proibida, para garantir a reprodução dos animais.

Este capítulo determina simplesmente que todas as embarcações que se acercarem da área de Lisboa, não poderão descarregar suas mercadorias em lugar algum, seja por que motivo for, sob pena de perdimento para as mercadorias, pena de cadeia para o responsável pela embarcação e mais penas variadas e não especificadas, em aberto... Tudo isso para impedir que as mercadorias não sejam devidamente descarregadas na Alfândega de modo a serem tributados e a Fazenda Real receber o que lhe é devido.

Note-se que estamos frente a uma medida de controle prévio, como ainda vemos no Regulamento Aduaneiro, cujo objetivo não é propriamente a tributação, mas o encaminhamento da mercadoria para o canal competente, evitando a prática do contrabando.

De interessante, a verbosidade, a descrição abundante dos lugares - todos - onde não podem ser descarregadas as mercadorias, para evitar qualquer dúvida. Assim todos os lugares, tipos de veículos, motivações da viagem e proprietários ou responsáveis são citados, tanto generica como particularmente.

Nau, segundo Houaiss, no século XVI seria um navio de grande porte, acastelado tanto na proa como na popa, geralmente com uma única vela redonda, mas Bluteau afirma ter dois mastros. Urca seria um barco largo, dois mastros, fundo chato, preferido pelos holandeses. navios e as demais embarcações. Segundo Bluteau, navio seria uma embarcação menor. Assim, a redundância inicial da referência a embarcações faz sentido, pois com o advento das caravelas, com velas latinas e deslocando duzentas toneladas, elas estariam excluídas da lista.

Vale ainda citar os batéis, equivalentes dos escaleres, ou seja, pequenos barcos transportados dentro dos barcos maiores, para serem usados no trânsito entre dois navios em alto mar, ou do navio até a praia ou porto. Lembremos que com a pequena maneabilidade dos veleiros, não fazia muito sentido tentar ancorá-los num cais.

Franquia possui diversos sentidos. Poderia ser o local onde as embarcações podiam fundear, sob controle aduaneiro, mas evidentemente ali não poderiam vender as mercadorias, de modo que o significado mais provável seria o do lugar para o qual as mercadorias seriam descarregadas, pagariam os direitos e então poderiam ser vendidas.

Os locais citados, em sua maioria, existem hoje com a mesma denominação. A Torre Velha, atual Forte de São Sebastião de Caparica, ficava na outra margem do Tejo, à vista da Torre de Belem. A torre de Saõ Giaõ é o atual Forte de São Julião da Barra, na ponta de São Gião, na margem direita da foz do rio Tejo.

Resta inexplicada a "pena de cadea" associada a unidade de moeda, o cruzado. Como uma moeda poderia definir a duração da prisão? Ou a prisão poderia ser trocada por uma multa? Como solucionar a dúvida?

Por oportuno, informo que, segundo Costa, em 1500 essa moeda continha 3,74 g de ouro.

Ver:
Cruzados da Cadêa

Referências:
COSTA, Antonio Luiz Monteiro Coelho da. O valor do dinheiro na Europa Medieval. Disponível em . Acesso em 26 jun 2008.
PORTUGAL. Ordenações Afonsinas. Coimbra: Real Imprensa da Universidade de Coimbra, 1792. Edição facsimilar: Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1984.

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